terça-feira, 22 de maio de 2012

O monólito de Kubrick







ATENÇÃO: Há Spoiler neste texto. Quem não viu e não deseja ter estragada a surpresa, favor ir urgentemente assistir a esta obra-prima.


Trata-se da grande obra-prima da ficção científica, e talvez do cinema como um todo, 2001: A Space Odissey (2001: uma Odisséia no Espaço), de Stanley Kubrick, cujo roteiro foi escrito pelo grande diretor em conjunto com Arthur C. Clarke, que também lançou o livro homônimo no mesmo ano de 1968, finalizando um projeto idealizado por ambos desde o início daquela década. Enquanto Clarke possuía o incrível dom de criar cenários criativos e verossímeis, sob o ponto de vista científico, através da palavra escrita, Kubrick tinha como característica notável o fato de ser um exímio compositor de cenas soberbas e tecnicamente perfeitas, quanto ao cinema, sempre buscando o arranjo da trilha sonora ideal à movimentação de imagens. Logo, nota-se que esse casamento não poderia redundar em nada menos do que na grande obra do século (ao menos, é a obra que sintetiza com perfeição o estado humano contemporâneo, na sua relação incipiente com as novas inteligências, o novo conceito de território e exploração do espaço, bem como a presença de velhos dilemas e a velha curiosidade diante do inusitado e desconhecido).  

O início da obra é denominado como “A Aurora do Homem”, em que se apresenta a relação do homem primata com a natureza, cujos desafios impostos exigem o avanço da inteligência, a fim de que seja possível dominar aquele habitat hostil. A tribo desses ancestrais comuns aos símios é demonstrada como frágil, sucumbindo diante das feras, como na cena do ataque de um felino a um indivíduo. O que gera a mudança, então? Um estranho monólito encravado no cenário desértico da África, cuja origem se deduz alienígena, mas que em nenhum momento do filme se mostra (aliás, uma bela sacada!). Os primatas demonstram curiosidade pelo novo e, ao mesmo passo, relutam em tocá-lo. Através dessa experiência transcendental, os hominídeos passam a utilizar as ossadas como arma, a partir de um insight primitivo de um dos indivíduos, em que ele percebe o efeito do choque do osso sobre os demais objetos. Desta forma, aquela tribo conseguiu caçar com mais eficiência, bem como introduziu uma vantagem tecnológica em relação às demais tribos, concorrentes aos recursos escassos daquela região, com o uso dos ossos para fins bélicos. O filme sugere, portanto, que o monólito foi o motor do conhecimento, sendo responsável pelo grande passo dado pelos primatas. 

Falando em grande passo, Kubrick deu um salto gigantesco no tempo, numa cena que, com certeza, está entre as mais brilhantes de toda história do cinema. Em uma vitória da tribo desses hominídeos, um dos indivíduos, festejando a conquista, solta o osso no ar. Com a câmera registrando o movimento do osso, em sua queda, dá-se um corte imediato para uma imagem no ano de 2001 (ou seja, para o futuro distante em relação a 1968, ano do filme) de uma espaçonave, similar em forma ao osso, se locomovendo no espaço sideral, ao som de “O Danúbio Azul”, de Johann Strauss II. As palavras não bastam para descrever esse take! É de uma genialidade soberba! De um gosto e sentido estético absurdamente acima da média. Tão somente por esta cena, Kubrick resume a essência do cinema, em que pese haver uma dezena de cenas neste filme que poderiam muito bem cumprir tal papel. 

Esta seria, digamos, a segunda parte do filme, embora não seja introduzida por legenda, como nas demais. Após o maravilhamento daquela cena anterior, somos introduzidos na nave, em que nos é mostrado o cenário Kubrickiano (como em outros grandes filmes do diretor, nota-se um cenário com muito espaço, móveis assimétricos, dotados de cores extravagantes, causando uma sensação de que vivemos num futuro em que a estética de vanguarda predomina, numa substituição aos padrões clássicos, denotando a peculiaridade daquele momento vivido, bem como o império da insanidade. É assim em Clockwork Orange e em The Shining, só para citar os exemplos mais óbvios), a partir de um diálogo um tanto quanto confuso de dois agentes espaciais. Logo se percebe que Dr. Floyd, um dos agentes do primeiro diálogo do filme, possui um cargo de prestígio, bem como detém consigo informações de extrema relevância para a trama. Antes disso, porém, é importante ressaltar uma cena: o momento em que ele entra na cabine telefônica para se comunicar com sua filha. Vê-se o gênio premonitório de Kubrick em ação, pois eles se comunicam por um sistema de videoconferência. Ora, nada mais é do que uma tecnologia precursora do Skype! Brincadeiras à parte, de fato há aí uma bela demonstração da capacidade criativa deste diretor. Se não era possível em 2001, foi possível em meados da primeira década do presente século! Voltando à trama, Dr. Floyd, que naquele momento estava na Estação Espacial Internacional, tem como objetivo ir à Lua, a fim de se reunir com uma seleta cúpula, a respeito de uma descoberta revolucionária em solo lunar. 

É necessária, porém, mais uma pausa! Como passar batido pelas cenas primorosas dessa viagem feita da Estação Espacial à Lua? A primeira delas é de uma sutileza incrível e nos dá sinais do denodo de Kubrick ao realizar a película. Dr. Floyd está dormindo e sua caneta se lhe escapa. Por estar em um ambiente sem gravidade, a caneta flutua no ar, como se estivesse dançando a mais bela valsa de Strauss. Eu lamento muito deter a informação de como Kubrick filmara tal proeza (lembrem-se que naquela época não havia computação gráfica!), pois assisti ao “making of”, sendo que lá há a explicação de como o diretor a realizara. Lamento, sim, pois o meu arrebatamento diante da cena não permitia que eu tomasse conhecimento de como procedera o diretor. Eu preferiria imaginar que aquilo se tratasse de mágica! Essa é uma das grandes cenas que eu citara anteriormente. Somente um gênio se atentaria a isso. Coisas de Kubrick...Bom, voltando à cena, a caneta é recolhida por uma espécie de aeromoça. Esta, após, se dirige, e aí entra a segunda cena, à cabine dos astronautas, a fim de lhes servir a refeição. Porém, para chegar até lá, ela necessariamente tem de ficar de cabeça para baixo (em relação ao referencial da câmera, pois não há cima e baixo em um ambiente de gravidade zero) para que possa adentrar o recinto. Novamente, temos um diretor perfeccionista que busca o máximo de recursos para nos transmitir a ideia efetiva de que estamos visualizando algo peculiar ao movimento no espaço. A cena é, novamente, espetacular!

Ao pousar na Lua (é evidente que há outras cenas embasbacantes neste meio tempo, mas vamos avançar), na reunião, finalmente, se revela o segredo: foi descoberta uma evidência de vida inteligente fora da Terra. Como se descobriu? A partir da constatação de um bizarro campo magnético partindo da cratera Tycho (em homenagem ao astrônomo Tycho Brahe – 1546 a 1601 – cujo maior legado foi o método de observação dos astros, resultando suas próprias observações em dados que serviram a Kepler, para que este formulasse as Três Leis do movimento planetário). Ao escavarem-na, descobriu-se um monólito, idêntico ao retratado na era primitiva do homem. Conforme os cientistas, seria impossível aquele monólito ser resultado da natureza geológica da Lua, só podendo mesmo ter sido colocado deliberadamente ali. Descobriu-se, também, que o monólito enviava sinais para Júpiter, o que ensejou a terceira parte do filme.

Este capítulo é denominado como “Missão Júpiter: 18 meses depois”, no qual 5 tripulantes da nave Discovery 1 são encarregados de desvendar o mistério do planeta gigante. Três deles se encontravam em estado de hibernação, tendo em vista que seus conhecimentos só seriam utilizados a partir do pouso. Os outros dois eram responsáveis pelo controle humano da nave. Porém, o grande responsável pelo funcionamento da missão era o supercomputador HAL 9000, cuja capacidade de informação sobrepujaria a mais bem dotada máquina atual. A escolha do nome é interessante, pois se nos atentarmos um bocado notaremos que as três letras precedem, respectivamente, IBM. Ora, naquela época esta empresa detinha o controle absoluto da informática. Em um comparativo, a IBM representava, na década de 60, o que Google, Apple e Microsoft representam hoje juntos. A primeira dúvida: isso foi realmente intencional? A segunda dúvida: sendo intencional, isso foi uma homenagem ou uma crítica? Bom, a julgar pelo caráter do computador, estaríamos inclinados a entender que se tratasse de crítica. O HAL, em suas falas, sempre demonstrou um orgulho atroz por sua dita infalibilidade. Entre tantas outras interpretações, poderíamos entender que há uma referência ao status da IBM de monopolista de mercado. Considerando que conhecimento é poder, e sendo o HAL uma máquina com capacidade incrível de deter informações, isto é, com potencial gigantesco de conhecimento, deduz-se que o supercomputador detém o poder. Tal como a IBM detinha à época. 

 A respeito do temperamento da máquina, é necessário frisar que o comportamento dos homens é de uma frivolidade assustadora. Em uma das cenas, Frank Poole, um dos dois astronautas responsáveis pela viagem, recebe um vídeo de seus pais que o parabenizam por seu aniversário. Ele lhe assiste sem transmitir emoção alguma. O outro astronauta, David Bowman, demonstra seu temperamento robótico através dos diálogos com o HAL, sempre se mantendo em uma linha de neutralidade, sem esboçar reações, mesmo nos momentos de maior aflição e tensão. É a inversão da lógica, considerando que HAL demonstra a todo o momento seu orgulho, manifestando, assim, uma emoção tipicamente humana. A evolução da civilização humana nos levaria a uma falta de empatia, bem como à primazia da racionalidade. Contudo, a evolução da informática tornaria os computadores cada vez mais dotados de emoção, a partir da maior complexidade dos circuitos elétricos e capacidade de informação. É uma espécie de paradoxo que se vislumbra. Afinal de contas, para onde a evolução nos leva? Nota-se que o tema evolução é constante no filme, dado que o princípio da humanidade fora retratado sob o prisma do darwinismo, em seu primeiro “capítulo”.

Tratei, anteriormente, de momentos de tensão entre o HAL e os astronautas. O que originou tal aflição foi o fato de que o computador transmitiu falsas informações a respeito de um compartimento externo à nave, acusando uma eventual falha que levaria ao colapso do sistema em 72 horas. Bowman se dirigiu até lá através de uma cápsula que lhe permitiu a aproximação ao problema verificado. A cena é sublime, pois denota a dificuldade da operação, em que o movimento tem de ser perfeito a fim de que o astronauta não se perca pelo espaço sideral, assim como se passa lentamente, transmitindo com o máximo de verossimilhança a locomoção nessas condições. Ao retornar à nave, foi constatado que não havia problema. Caracteriza-se, então, a primeira falha da série de computadores HAL 9000. Quando questionado pelos astronautas, a empáfia da máquina surge mais uma vez, ao afirmar que só poderia se tratar de erro humano, porquanto era infalível. Afirmou, categoricamente, que jamais cometera um erro sequer. Desconfiados, os astronautas arrumam um subterfúgio para se isolarem na cápsula, a fim de que conversassem sem que o HAL pudesse lhes ouvir. Lá, eles travam um diálogo cortante, em que sugerem o desligamento do computador, por desconfiarem de sua eficiência, o que poderia pôr em risco a missão e, por conseguinte, suas vidas. Contudo, eles não contavam com o poder de dedução de HAL, que, através da janela pela qual os rostos de ambos apareciam em seu campo de visão, fez leitura labial do diálogo, detendo a informação do intento dos reticentes cosmonautas. 

A partir disto, HAL passa a surtar, agindo de forma a boicotá-los, pois seu orgulho não admitia que reles humanos assumissem o controle de uma missão de tal envergadura. Deste modo, quando Poole foi recolocar o compartimento, na área externa, o computador agiu para tirá-lo da órbita, fazendo com que se perdesse pelo espaço, em uma cena das mais terríveis na história do cinema (poderia muito bem concorrer a uma das melhores cenas do gênero terror). Bowman, a partir da cápsula, que era dotada de braços robóticos, foi em busca de seu colega, em uma perseguição angustiante, logrando êxito. Ao mesmo tempo, HAL desligou determinadas funções as quais eram responsáveis pela hibernação dos outros 3 cientistas, levando-os à morte. No retorno de Bowman à nave, a partir da cápsula que tinha em “mãos” Poole, HAL se negou a abrir a porta, expondo a sua frustração ao desnorteado astronauta, afirmando que os humanos colocariam a missão em risco, se o desligassem. Restou, assim, ao Bowman uma única alternativa: soltar, com os braços robóticos da cápsula, o combalido Poole, fazendo com que este se perdesse no espaço, a fim de retirar a porta à força. Temos aí outra grande sequência do filme, a partir da qual o indignado cosmonauta visa tão somente à morte da máquina, isto é, desativando as suas funções elétricas. HAL, desesperadamente, tenta convencê-lo do contrário, alegando que não repetirá mais as últimas ações e insinuando o perigo deste desligamento, tendo em vista que o computador controlava todas as funções da nave. Bowman não lhe dá ouvidos e executa a sua morte, que é precedida de um momento singelo, em que HAL canta a música que ele próprio cantara em seu “nascimento”. Percebe-se, mais uma vez, a humanização da máquina, que, diante da morte iminente, recorda momentos importantes de sua vida. 

Entramos, então, no quarto e derradeiro capítulo, denominado como “ Júpiter e Além do Infinito”. Esse é o momento mais controverso do filme, pois Kubrick não fez questão alguma de ser claro quanto a sua intenção. Temos um Bowman surtado que, ao se aproximar de Júpiter (destaque para as imagens do planeta cercado por seus satélites – 66 no total, tendo Europa, Io, Ganímedes e Calisto como os maiores e principais, por serem os quatro famosos satélites visualizados por Galileu através de um telescópio de pequeno porte na Terra), é tomado por uma enxurrada de luzes psicodélicas, com imagens galáticas, e, posteriormente, estruturas montanhosas em cores extravagantes, como se a nave estivesse penetrando na atmosfera do planeta. Há espaço para muita interpretação nestas imagens. Há quem diga haver uma sugestão de sexualidade de natureza interplanetária, através de imagens que lembram o útero, óvulos e a penetração de espermatozoide. As luzes são entrecortadas por imagens do astronauta em estado de choque, de uma forma tipicamente Kubrickiana. Após uma overdose de psicodelia à la Pink Floyd, há a sequência final do filme, altamente metafórica, na qual Bowman, já mais idoso, se enxerga sentado, mais velho ainda. Após, o Bowman sentado, se enxerga numa cama, decrepitamente velho. Este, por fim, estende o dedo ao vislumbrar o monólito em frente à cama. A partir disso, ele se transforma num feto. A cena final é com o mesmo bebê, só que em proporção planetária, observando a Terra, aproximando-se dela cada vez mais. Um final espetacular para um filme perfeito!

O que realmente significa este final? Impossível dar uma resposta única. A minha interpretação é no sentido de que o bebê representa o grande e, talvez, último salto da humanidade, perpetrado por inteligência extraterrestre a partir do monólito. A presença do monólito sempre representou, no filme, um impulso dado por força exterior ao homem, para que este evoluísse em proporção exponencial. O bebê seria, então, a espécie humana chegando ao ápice evolutivo, aproximando-se cada vez mais da capacidade tecnológica e moral desses extraterrestres. As luzes poderiam representar a natureza etérea desses seres alienígenas, que já estariam em um plano superior de matéria. O Bowman idoso poderia representar a evolução do homem a passos rápidos, a partir do contato com o monólito. Ele rapidamente atingiu a velhice, tornando-se ultrapassado, por estar próximo dessa catapulta evolutiva. Neste caso, seria pura metáfora, sendo Bowman a representação da espécie humana no estágio atual.

Porém, podemos ir além. O que afinal de contas representa o monólito? Dentro da lógica do filme, está claro o seu papel. Mas numa lógica conotativa, digamos assim? Seria uma representação dos grandes insights da humanidade, tal como a descoberta do fogo, a agricultura, a moeda, a navegação, as grandes descobertas científicas etc? Seria uma tentativa de provar que ao homem só é possível um grande avanço a partir de uma indução externa, seja divina ou extraterrestre? E o HAL? O que representa esta máquina? O dilema ético da evolução de sistemas robóticos e de informática entra em ação, é claro. Mas o que mais pode se deduzir? Há uma supremacia da máquina sobre o homem, ou se mostra o contrário? Quais são os limites de poder e responsabilidade que podemos permitir a uma máquina de extrema inteligência?

A resposta para tudo isso quem dá é o próprio Kubrick:

“Eu tentei criar uma experiência visual, que se desviasse do campo das palavras e penetrasse diretamente no subconsciente com um teor emocional e filosófico. Projetei o filme para ser uma experiência subjetiva intensa, que atinja o espectador num nível profundo de consciência, exatamente como a música faz, ou a pintura. Você está livre para especular como quiser sobre o sentido filosófico e alegórico do filme.”

Basta-nos assumir nossa liberdade de especulação e deixar que os nossos sentidos perscrutem este mundo incrível de beleza artística incomparável. Talvez este filme seja o monólito do cinema, pois não há cineasta que não o tenha tocado com curiosidade e receio, e que não tenha se transformado como artista. Eis o que o alienígena Kubrick nos oferece...

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