sexta-feira, 20 de março de 2015

Geração Registradora



Sou produto de um tempo curioso. Conheci o mundo com filme limitado a 24 fotos, o que constituía gravidade à escolha dos takes - faça a foto certa ou terá desperdiçado um tiro. Ainda pior: era necessário revelar a sessão de fotografia. Incontáveis as vezes em que se descobria que o filme da máquina, temperamental que era, simplesmente não havia funcionado. Foi-se o registro, foi-se o tempo que passou, e que nunca se recupera. O curioso da minha geração foi ter vivido isso, assim como vivo o mundo dos smartphones e paus de selfie. A diferença entre esses períodos é brutal! Considero-me afortunado por ter a experiência de viver mundos diferentes. A fortuna não se dá porque eu entenda que haja um necessário progresso, mas em razão de que sou humano, sendo característico da nossa natureza o gosto pelas experiências.



Como um experimentador, analiso os fenômenos que me cercam, com inevitável perturbação, levando-me à seguinte conclusão: há algo de profundamente errado no modo de viver da geração atual! 



Sou apaixonado pelas nomenclaturas. Considero que não há nada mais inteligente do que o poder de concisão do signo que se dá às coisas. Acho fantásticos os nomes das operações da Polícia Federal. Vejam, como exemplo, o nome da famosa atual: Operação Lava Jato. Que coisa magnífica! Reside sua genialidade em seu poder de conceito. Os nomes têm de trazer consigo a natureza da coisa nominada, senão não prestam; são disfuncionais. Logo, para tratar do tema em análise, considero fundamental que cheguemos a uma nomenclatura para designar a atual geração. Minha melhor ideia, até o momento, foi chamarmos esse conjunto de pessoas e de estado das coisas de "Geração Registradora". Numa relação antitética com a geração anterior, que não era hábil em registrar suas coisas, por carência tecnológica, tem-se um nome apropriado para a atual situação. O que sabemos fazer de melhor, hoje, é registrar. As tecnologias criadas instigaram um comportamento nunca antes visto socialmente. Porém, o que fazemos de pior, hoje, é registrar, por mais paradoxal que isso soe. É daí que inicio minha tese.



Nada como a narrativa dos fatos cotidianos para o embasamento do que se pretende argumentar. Pois vejam: em um concerto de rock de um artista internacional consagrado, estava eu, no alto dos meus 1,73m, tentando enxergar o que escutava. Afinal, não pagamos caro para escutar, pois isso fazemos em casa, na rua, na fazenda - ou numa casinha de sapê. Gastamos para ver - essa é a onda da coisa toda! Já não tenho mais idade para ficar em pista de show, visto que estou perto dos 30. Meu lance agora é curtir show sentado em cadeirinha, gritando "bravo" ao final da execução - ou um pouquinho antes do final da execução, numa demonstração de que não conheço realmente aquela música, que era lado B de um álbum obscuro. Mas lá estava eu, na pista. Perdi todos os melhores momentos do show, visto que uma massa de celulares foi alçada ao topo, ao arrepio do senso coletivo. Próximo de mim havia um sujeito com um tablet. Reparei que, após o término de suas gravações, ele sacava seu retumbante whatsapp (nunca havia visto um whatsapp em tablet, pois não tenho tablet - para mim, aquilo era retumbante, grandioso, um whats com W maiúsculo) a fim de repassar seu arquivo para um amigo desafortunado que, por alguma razão, não pôde pagar pelo show, mas que, na realidade, assistiu-o quase ao vivo, por uma espécie de teleconferência. Fiquei embasbacado com o tempo que o cidadão perdia para finalizar a gravação e postar sua bela filmagem ao seu contato, enquanto o show rolava. Tenho a nítida sensação de que essa pessoa não viveu o show, não o experenciou. Ele apenas registrou. Pelo visto, eu também não vivi o show, pois essa pessoa me distraiu sobremaneira, a ponto de notar todos os seus cliques. Tampouco registrei. Talvez ele tenha se dado melhor nessa...



Temos aí um belo exemplo do que essa geração é capaz! Registra-se tudo e transmite-se essa informação à velocidade da luz para pontos muito distantes. Porém, não se vive. As experiências atuais são rasas, descartáveis. Há uma avidez em fotografar, mas sem cuidado com o objeto, com a representatividade do momento,  com a importância em se estar naquele espaço e naquele exato tempo. A avidez possui função em si mesma: é registrar para registrar, tão somente. Com as redes sociais, há a exibição dos registros. Likes e shares se multiplicam, contudo dotados de um vazio irremediável. O quanto efetivamente se curte aquela trilionésima foto sobre a festinha dos amigos? No que consiste esse curtir?   Não seria uma retroalimentação do egocentrismo social a que estamos submetidos? Curto para que me curtam, pois devo ser curtido. Ninguém, na realidade, parece estar curtindo...



Como sou produto desse conflito geracional, seria hipócrita adotar um discurso de fora, visto que estou atolado nessa história. Já empunhei minha câmera ao alto em shows, já fiz selfies, já registrei mais do que vivi, já dei f5 no Face, em busca de mais likes na minha postagem. A diferença entre mim e boa parte das pessoas é que em algum momento minha ficha começou a cair. Isso passou a não parecer sadio. Havia alguma coisa profundamente errada comigo. E, de fato, havia. Saí do Facebook para me oxigenar como ser vivo e vejo que foi uma das coisas mais acertadas que fiz nos últimos tempos. Tornei-me produtivo como há anos não me sentia, letárgico que estava naquele mundinho virtual em que buscava sustentar meu ego. Já não levo mais máquinas em shows e tiro muito menos fotos do que antes. Selfie, nem pensar! Criei o movimento antisselfie, ainda quando estava no Facebook, mas ele evidentemente fracassou. E o que havia de errado comigo é o que há de errado com a nossa geração. Não que seja necessário sair do Face, deixar de tirar fotos etc. É preciso, somente, refletir sobre o que se está fazendo. O que nos leva a um determinado comportamento? Procuremos pensar um pouco sobre isso. Alguém tem de sair da toca e acusar o tirano. Para isso, estou aqui. Eis o meu convite: reflitamos sobre nós!



O último passo a dar é fazer um apelo à próxima geração, que desconhecerá por completo o que é uma máquina Olivetti: o que vocês pretendem para a vida de vocês? Experimentar ou registrar? Saber de tudo um pouco ou de um pouco quase tudo? Desvirtuar-se no virtualismo ou produzir no realismo? Não é necessário negar a tecnologia à disposição, mas não seria interessante fazer um uso racional e refletido dela? A tocha estará com vocês, em breve.