segunda-feira, 26 de março de 2012

NO FUCKING WAY

O dia 25/03/2012 ficou marcado em minha vida como um divisor de águas. Hoje, sou uma pessoa mais exigente graças ao indescritível evento realizado nesta data, no glorioso estádio Gigante da Beira-Rio, em Porto Alegre/RS. Refiro-me ao babilônico show de Roger Waters, cuja turnê "The Wall" vem arrebatando multidões pelo mundo, pela embasbacante produção visual e musical, numa conjunção artística poucas vezes vista antes, cujo resultado estético é nada menos do que primoroso.

"The Wall", como muitos sabem, é um dos álbuns mais populares da banda britânica Pink Floyd, devido muito aos hits "Another Brick in the Wall II", "Mother" e "Comfortably Numb", sendo, principalmente, a primeira destas músicas a mais famosa da banda, e executada exaustivamente por várias gerações em diversas mídias. Porém, este álbum conceitual é muito mais do que "aquele que tem 'Teacher, leave the kids alone'". Trata-se de um trabalho idealizado, dirigido, vivido e escrito pelo Roger Waters, que deposita todas suas angústias na temática desta ópera-rock, desde a perda do pai na 2ª Guerra Mundial à instrospecção motivada pela personalidade "não-encaixada" no sistema. Tendo isso como argumento, faltava-lhe o estopim, o qual se deu em um show na década de 70 em que Waters teve problemas com a plateia, levando-o a projetar um muro no palco, separando definitivamente o músico do público, consistindo a armação de tijolos numa metáfora de isolamento frente às exigências de paradigma da sociedade.

Nada mais justo, portanto, que Waters tomasse esse trabalho como seu, mesmo que, indubitavelmente, os demais integrantes do Pink Floyd tenham sido fundamentais para a execução desse projeto (exemplo disso é a parceria com David Gilmour na composição da excepcional "Comfortably Numb"). Sendo "The Wall" a produção artística que retrata o âmago de Roger Waters, justifica-se que ele tenha retomado a turnê, aproveitando o ensejo tecnológico disponível nos dias de hoje, o que em 1979 era impensável. Waters viu na tecnologia contemporânea o combustível que faltava para tornar a realização artística tão notável quanto imaginara aquele rapaz atormentado da década de 70. Evidente que "The Wall" com o Pink Floyd é absurdamente notável! Entretanto, em termos de apresentação ao público do produto final (música + visual), não há como comparar, em que pese ter sido espetacular a breve turnê de 1980. A perfeição celestial seria alcançada, é claro, se o Pink Floyd, com todos os membros de 1979 - Waters, Gilmour, Wright e Mason -, tivesse à disposição a tecnologia atual. Mas como a perfeição celestial não existe, ficamos muito felizes com isso que vemos agora!

Após esse brevíssimo resumo da origem de "The Wall", temos de considerar o show. Sublime, apoteótico, orgasmático e perfeito são alguns dos adjetivos possíveis, mas não encerram. É necessário mais! Ou menos, pois a contemplação estupefata e silenciosa pode ser mais eloquente que qualquer predicado. O espectador é imerso no mundo de Waters sem que seja pedida sua licença. Ao apagar das luzes, todos acabam hipnotizados pelo teatro encenado magistralmente no palco por competentes atores que simulam um partido totalitário digno de um cenário distópico à la Orwell (aliás, o Pink Floyd bebia direto dessa fonte, sendo o álbum "Animals" baseado no famoso livro "A Revolução dos Bichos", do mesmo autor de "1984" - o qual influenciou diretamente a temática do "The Wall", sendo evidente isso nas imagens projetadas durante o show). A entrada de Waters é triunfal e vem acompanhada de dezenas de fogos de artifício, com a projeção do símbolo do partido ficcional no muro parcialmente construído. A música que acompanha essa abertura é a faixa 1 do álbum, "In the Flesh?", perfeitamente executada pela banda. Ao fim, um aeromodelo que lembra um avião de guerra, acoplado no alto de um dos refletores do estádio, vai de encontro ao muro, causando uma explosão, tanto de fato, no palco, quanto de alegria na plateia, absolutamente embriagada com o efeito sensorial provocado pelo início da apresentação. Segue a apresentação com "The Thin Ice", emocionalmente competente com a música suave e as imagens de vítimas de guerra e terrorismo projetadas, dando uma ênfase política contemporânea, demonstrando a atemporalidade da temática do álbum supracitado. A sequência de "Another Brick in the Wall I", "Happiest Days of Our Lives" e "Another Brick in the Wall II" é de tirar o fôlego, pois parte razoável do público estava ali justamente em razão dessas famosas músicas. Logo, esta é a parte do show em que todo público canta e agita, gerando uma histeria coletiva, perfeitamente encaixada com a proposição de um partido articulando as mentes individuais a fim de um denominador comum previsto pela ideologia totalitária. No entanto, isso decorre naturalmente, não sendo uma intenção cenográfica de Waters, havendo apenas a feliz coincidência do público reagir de um modo que torna ainda mais verossímil aquela história contada musicalmente pelo gênio do vocalista e baixista. A imagem de um oceano avermelhado, fluindo naturalmente a correnteza, juntamente com "Another Brick in the Wall I" é um dos grandes momentos do show, pois resulta em uma experiência de transe, em que o público é levado a mergulhar seus sentidos naquela viagem de ondas sonoras e partículas-ondas de luz colocadas de um modo particularmente perfeito. É uma realização espiritual, mesmo que para um cético como eu! Qualquer palavra dita e escrita não representa o que é estar diante de tal fenômeno. Em "The Happiest Days of Our Lives" há a aparição do boneco gigante que representa o ditatorial professor, cuja forma monstruosa sugere o caráter negativo deste ser. Já em "Another Brick in the Wall" a tonalidade do muro modifica, projetando o símbolo do partido e algumas faces, como a de uma muçulmana. Destaque para o grupo de crianças que invadiu o palco na segunda estrofe e o solo marcante executado pelo competente guitarrista Dave Kilminster.

Após essa enxurrada de emoção, o espectador já se encontra hipnotizado e incrédulo. Waters suga todos para seu mundo hostil, em que ele projeta no exterior a razão para a mazela psicológica a que é acometido, levando-o posteriormente ao isolamento, representado pelo muro. As razões do exterior já estão bem compreendidas a esta altura, quais sejam o totalitarismo dos costumes, a padronização de personalidades, a construção de caracteres na infância a partir de um modelo ideologicamente corrompido. Como não há espaço para ruptura, Waters se fecha em um muro, que foi por muito tempo o sinal de segurança, ao menos territorial, tendo em vista as construções históricas, acentuadas no período medieval, a fim de impedir a intervenção de tribos inimigas. A tribo de Waters é sua psiquê, e a inimiga é aquilo que se costuma denominar como sistema. E o sistema ele vai escancarando aos poucos, através da música e do visual da primeira parte do álbum e show. Em "Mother" ele transmite uma figura materna paradoxal, que é tanto responsável por sua incapacidade de autossuficiência quanto seu porto seguro. Em "Goodbye Blue Sky" há a representação da guerra e dos diversos matizes ideológicos que a inspiram e são igualmente, conforme Waters, responsáveis pelo sangue derramado. Aqui, aliás, há o grande momento do show, ao meu ver, pois as imagens projetadas são simplesmente surreais. Visualmente, ao menos, é a melhor experiência do show.

As críticas seguem em "Empty Spaces", "Young Lust", "One of My Turns", "Don't Leave me Now", "Another Brick in the Wall III" e "Goodbye Cruel World", com a necessidade intrínseca de se relacionar, a luxúria indo ao seu encontro, a ruptura da relação, a construção de mais um trauma e o enclausuramento com uma despedida desses fatores externos, tornando-o inatingível a partir do muro metafórico. Em termos de produção de show, destaca-se o visual em "Empty Spaces", com o acasalamento selvagem das flores, demonstrando a mulher como proprietária do relacionamento, tal como uma predadora que suga as energias do já enfraquecido homem vitimizado pelos diversos traumas vividos.

A segunda parte do show inicia com a sublime "Hey You", com o público de frente ao muro impedido de acessar o mundo de Waters, que se encontra enclausurado. A sensação de assistir a uma música sendo executada por uma banda a qual não podemos visualizar é estarrecedora. Trata-se de um momento singular para o espectador, em que ele é arremessado à trama e dela já não pode mais fugir. Sem ato de vontade expresso, a plateia passa a ser a representação do mundo exterior proibido de importunar os sentimentos de Waters (a personagem é Pink, na trama). E, assim como o sistema que Waters evita, o público deseja inconscientemente retirar Waters de sua cela, a fim de satisfazer seu desejo voyeur de ver exposta a personalidade do protagonista. Ou seja: o público, sem saber, cumpre o seu papel de forma absolutamente perfeita! "Is There Anybody Out There" sugere a vã tentativa de comunicação com o mundo externo. Em "Nobody Home", Waters expõe o seu vazio existencial parcamente preenchido pelos bens materiais, pelos quais a personagem não demonstra apreço. "Vera" é o momento em que a personagem se recorda de uma antiga paixão, cuja procedência não fica clara na trama. É o mundo externo invadindo por outras vias o cercado de Waters! "Bring the Boys Back Home" é a manifestação do sistema tentando fazer com que Waters retorne ao padrão da sociedade. "Comfortably Numb" é a fuga mental a partir do uso de tóxicos. Aqui, no show, fica o destaque para a produção de imagens arrebatadoras, bem como os músicos, vocalista, que faz as vezes do Gilmour na voz do refrão, e guitarrista ascendidos ao topo do muro, com a execução perfeita dos dois clássicos solos de guitarra. É outro espetacular momento do show, pois grande parte do público entoou o refrão com toda a força. Em "The Show Must Go On", "In the Flesh", "Run Like Hell", "Waiting for Worms" e "Stop", segue a alucinação de Waters em que se traveste de ditador e foge desesperadamente para se manter isolado, bem como chamando a atenção para os seus pares marginais que estão do outro lado do muro, e pelos quais espera para se somar nessa luta que é tão-somente individual. Quanto ao show, destaque para a produção em "In The Flesh", lembrando um verdadeiro comício partidário, com direito a metralhadas de Waters e a presença de um porco de lona na plateia, com dizeres panfletários em português, destacando-se, dentro desses, o "R$ 2,85 é roubo" (um manifesto tipicamente porto-alegrense, devido à alta do preço da passagem de ônibus). Uma sacada genial de Roger! Vimos o quanto o artista estava preocupado em saciar os fãs. E nem precisava tanto...

Por fim, vem "The Trial", numa sequência de animação simplesmente deliciosa, em que Waters, ainda alucinado, se submete a um julgamento, cujo resultado é a ordem de derrubar o muro, expondo-o ao sistema como pária. E "Outside the Wall" num grand finale, com todos os músicos a postos, cantando juntos, em um ritmo de confraternização com o público.

Um show e uma história incríveis! Um dia inesquecível!

Waters, ao fim deste show de produção faraônica, expôs algo de fato para todo mundo ver e apreciar: sua genialidade!

E lembrando da resposta de Waters, dada no show a partir de uma projeção de imagem no muro, à questão "Mother should I trust the government?": NO FUCKING WAY!

Não poderia estar mais certo...



Seguem dois dos diversos vídeos que gravei ontem:

Another I, The Happiest e Another II

In The Flesh?