quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Santa Maria e Renúncia do Papa: A Busca Humana por Respostas e Responsáveis




É da natureza humana a ânsia em encontrar resposta para todo fenômeno que parece estar ao nosso alcance - o que não está ao nosso alcance, também é perseguido insistentemente, diga-se. Criamos sistemas lógicos para esse fim, bem como métodos mais sofisticados de persecução da aproximação da verdade. Um exemplo de dedução seria algo como “se B gera C e A contém B, então A é a causa primordial de C”. Por outro lado, um método mais sofisticado envolveria a observação da natureza de A, B e C, derivar as suas relações, criar hipóteses e, por fim, testá-las em diferentes ambientes e circunstâncias, se possível for. Evidentemente, há um sistema lógico intrínseco a esse método, porém temos um grau de aferição superior, pois retiramos o objeto de estudo do estado hipotético, contido idealmente, e o colocamos no mundo real, para que possa se manifestar na prática. É claro que temos de reconhecer a limitação humana de observação, mas é inevitável verificarmos que há aí um avanço.

Por ora, tratamos apenas da distinção entre sistemas epistemológicos. Definitivamente, não é este o objetivo do texto. Sim, temos diferenças em abordarmos a realidade, ao tentarmos definir as causas para que as coisas sejam postas da forma como estão aí caracterizadas. Sim, e daí? Ora, estamos tratando nada mais nada menos do que todo o desespero da história humana em buscar respostas! A construção de sistemas dessa natureza é o resultado de um esforço intelectual que se origina desde o momento em que um ancestral se deparou com todo o ambiente a sua volta e o refletiu. “Se está chovendo, é porque algo ou alguém a origina. Se nascem frutas das quais posso me alimentar em uma árvore, é porque alguém quis assim. Se eu estou aqui, devo ter uma origem.” A teologia, a filosofia e as ciências humanas e exatas derivam dessa abordagem primordial, que aos poucos foi se sofisticando à medida em que alguns fenômenos foram se esclarecendo. Mas o que move isso, em primeira instância, é o desespero, a aflição. Não há maior abalo psicológico do que a falta de respostas, para o homem.

Os fenômenos podem ser divididos em naturais e antrópicos. Não há falar em culpa, quando estudamos o primeiro conjunto de fenômenos. Não se pode culpar a natureza, pois não se trata de ente consciente, portanto passível de responsabilidade. Da natureza, apenas se aceita. Ao contrário, quando lidamos com fenômenos antrópicos, falamos apropriadamente de responsabilidade. Se um homem originou tal ato, ele, e somente ele, deve ser responsabilizado, independentemente do juízo de valor que se faça do ato em si. Se ele provocou o bem-estar de outras pessoas, o agente, como responsável pela ação, será agraciado por esses sujeitos beneficiários. Se provocou o mal-estar, o agente será culpado, seja intencional ou não a sua ação. Evidentemente, a sua ação deve ser analisada cuidadosamente, para se lhe imputar a culpa. Ele pode ter agido de uma forma tal que tomara todas as precauções para não incorrer em determinada ação, evitando a negligência, imperícia ou imprudência. Neste caso, não se recorre à culpabilidade. Tanto é assim que é exatamente essa a definição jurídica de culpa, no âmbito criminal. O dolo é ilícito que envolve a capacidade subjetiva do agente em desejar a consequência prevista por uma ação sua. A culpa, em sentido restrito, por seu turno, envolve a possibilidade de se precaver em tal ato, a fim de não gerar a consequência prevista, mas não intencional. Perfeito! Mas não estamos aqui para tratar de conceitos jurídicos. O que se analisa é a incapacidade psicológica do ser humano em não encontrar uma resposta devida. É necessária uma causa, um responsável. Sem isso, perdemos o chão.

Dois eventos recentes trouxeram-me a essa reflexão, quais sejam a tragédia de Santa Maria e a renúncia do papa Bento XVI. No primeiro caso, houve uma espécie de unanimidade, por meio da imprensa, em apontar culpados para a desastrosa consequência de mais de duas centenas de vítimas. Os principais responsáveis noticiados foram os músicos, que utilizaram de pirotecnia em seu show, bem como os donos do estabelecimento, que revestiram o teto da casa de shows com espumas acústicas altamente inflamáveis, além de liberarem gases tóxicos a partir do incêndio. A soma dessas ações foi a causa do horror vivenciado por todos que ali estavam, e que chocou o mundo. O tamanho da tragédia parece exigir uma resposta. A partir daí, utiliza-se todo o recurso intelectual que o homem preparou: silogismo (se A carrega fogo, B dispõe de objeto inflamável e duas centenas de pessoas morrem em decorrência de incêndio, logo A e B são os culpados), método científico (perícia), fundamentação jurídica (conceito de culpa, dolo eventual, homicídio, crime), identificação do fenômeno (natural ou antrópico?). É intenso o esforço de se chegar a alguma explicação plausível para que tal evento trágico tenha ocorrido. Mas, e se não houver nenhum culpado? E se se verificar que o músico é somente mais uma vítima disso tudo? Ora, a pirotecnia é arte das mais antigas! A quantos eventos costumamos ir em que se utilizam de artefatos em combustão? Será que todos os pirotécnicos estão incorrendo em imprudência? Pelo que se conhece dos noticiários, os músicos estavam acostumados a utilizar o sinalizador em seus shows. Portanto, imperitos não eram. Seria imprudência ou, ainda pior, dolo eventual o ato que gerou essa catástrofe? Quanto aos donos do estabelecimento, seria realmente previsível que a espuma liberaria tais gases? Alguém realmente sabia disso antes deste evento? Depois que os peritos divulgaram a presença de tais gases no sistema respiratório das vítimas, ficou evidente a todos. Restou facilitado o julgamento moral, naquele instante: “ah, esses vis empresários que só visam ao lucro! Não se prestaram a adquirir as espumas acústicas que não liberam os gases e deu no que deu!” Mas espera aí: tu não sabias disso há um minuto! Como podes sair a julgar desta forma? Ademais, quem vende o produto não deveria também ser responsabilizado? E os vizinhos que se perturbariam, se o som não fosse abafado, também não possuem certo grau de culpa? Vejam que é bem possível estendermos o rol de responsáveis quase que ilimitadamente. Se possível, depositaremos em toda a humanidade tal responsabilidade!

Não desejo sair em defesa de ninguém. Convido-os somente à reflexão: há realmente um culpado ou só estamos atrás de um, ou mais, a fim de satisfazermos a nossa sanha por respostas, amplificada quando diante de um evento de tal impacto? Os meandros do caso nós não conhecemos com profundidade. Pode ter havido, sim, alguma espécie de negligência, imprudência ou imperícia, ou até dolo eventual, por que não? Porém, não podemos, de forma alguma, defender tal tese com base no noticioso. Por quê? Porque a imprensa alimenta a nossa sede por respostas. E digo mais: não está equivocada! Entretanto, por ser assim a sua natureza, não podemos simplesmente confiar toda a verdade a ela. Cabe-nos a reflexão, a análise crítica.

O segundo evento do qual pretendo tratar refere-se à renúncia inesperada de Bento XVI. O homem comum simplesmente não consegue crer que alguém pode se afastar de um cargo dotado de tanto poder somente por não se enxergar mais apto fisicamente. Por não crer nisto, o sujeito busca uma explicação heterodoxa, algo próximo à conspiração. Desde o anúncio da renúncia que se efetivará ao final do mês, ensaiaram-se algumas versões concorrentes à oficial, do porquê deste ato. Sinceramente, creio piamente na versão oficial. Aliás, acho de uma humildade e dignidade notáveis! Apesar do meu ateísmo, enxergo na Igreja Católica uma instituição de extrema relevância política, tendo em vista que estabelece diálogo com as mais diversas correntes religiosas. Ademais, é uma das principais defensoras de valores ocidentais, tais como a liberdade, democracia, unidade familiar e de ordem moral, que advém da própria dogmática católica. Concorde-se ou não com ela (eu discordo de muita coisa, diga-se), é de extrema importância haver um agente político que defenda tais valores, com o intuito de se dar voz a uma parcela respeitável da população ocidental que não vê no dito progressismo forçado uma saída melhor.

Em Bento XVI, vi um papa devotado a exercer esse papel, sem recorrer ao populismo de seu predecessor João Paulo II, sendo talvez essa discrição a responsável por seu baixo carisma. Entretanto, trata-se de um dos papas mais bem preparados ao cargo que se tem notícia. O seu conhecimento teológico e histórico é notável, cuja contribuição bibliográfica assim revela. A sua intransigência em defender os valores católicos é louvável, pois, como representante máximo da instituição, cabe justamente a ele preservar a doutrina, respeitando seus fieis e a tradição.

Ao contrário dos críticos, que veem na Igreja um obstáculo ao progresso, penso que o catolicismo nos trouxe muito mais benefícios do que prejuízos. A partir do momento em que houve a constituição do Estado Secular, com a devida separação da Igreja, estabeleceu-se um limite claro a ambos os entes, fazendo-os florescer suas capacidades sem que interferissem na liberdade dos indivíduos. O maior salto de progresso da humanidade se deveu justamente ao papel do Estado e da Igreja, a partir do fim do absolutismo e o início da era liberal. Evidentemente, a ciência e as tecnologias são os principais motores do nosso progresso, mas estes são produtos desta separação e do estabelecimento das atividades afins a cada ente. A Igreja, com o passar dos anos, soube assimilar a importância da ciência e deixou de fazer o enfrentamento que era característico no período medieval e absolutista. Com a limitação de seus poderes, o dogma e as tradições - que oriundam daquele -, ficaram restritos aos fieis! Toda pauta católica se dirige àqueles que assim creem, ao contrário do que geralmente se atribui, como se a Igreja tentasse ditar a moral de toda sociedade ocidental. E como representantes de uma parcela conservadora da sociedade, é necessário, sim, que os dirigentes superiores da Instituição defendam valores por muitos considerados ultrapassados. O ambiente democrático exige que se dê voz a todas as representações ideológicas, dentre as quais se encontra a Igreja Católica.

A fim de preservar tais valores, acredito que Bento XVI renunciou para que pudesse articular em vida a sua sucessão, considerando a onda de populismo que já invadiu o catolicismo. E, ciente de suas limitações físicas, assim o fez para que seu legado se mantivesse, ao menos a curto prazo.

Deste modo, não há por que tentar buscar explicações complexas para tal evento. Ele é bem mais simples do que parece ser e exigir. Novamente, temos aí uma manifestação da vontade inata do homem de achar uma razão abrangente, que seja tão grandiosa quanto a magnitude de uma ação, tal qual uma renúncia papal.

Portanto, enquanto um fenômeno antrópico – incêndio de Santa Maria – requer a responsabilidade de alguém, que não necessariamente deva existir, outro fenômeno antrópico – o ato da renúncia papal por Bento XVI – advém de um fenômeno natural, qual seja a debilidade física pela idade avançada, sendo absolutamente desnecessária a busca por uma razão superior. Já essa busca alucinadamente humana por respostas possui uma explicação bem clara: o horror que sentimos em ser reles mortais, limitados e minúsculos perante toda a grandiosidade universal.