terça-feira, 2 de junho de 2015

Pelos ares

O gol mil (Fonte: www.vamovamointer.com)


Nos idos de 2004, discuti com um colega do 3º ano de ensino médio a respeito de um gol em um grenal. Ele, gremista, e todos sabem como são os gremistas; eu, um colorado inveterado, fanático, mas jamais doente, porque vocês sabem que colorados nunca o são. O gol havia sido feito por um colorado. Ganhamos aquele jogo por 2x0, para variar. Ele, o gremista, defendia que aquele gol estava desqualificado, pois não fora realizado por um ídolo, mas por um reles forasteiro que recém chegava por essas bandas. Eu, firmemente, resistia àquele argumento, defendendo a predestinação daquele sujeito, que em sua primeira partida anotava o tento em um grenal. Nada pode ser mais grandioso do que um gol em grenal, em estreia, repetia eu, convencido! 

No fundo, eu concordava com o gremista - afinal de contas, eles são bons argumentadores, tal como o Satanás. Poxa, o gol mil foi marcado por um forasteiro, pensava eu, em contraposição à minha apaixonada exposição. Estávamos, no entanto, redondamente enganados! Se havia um jogador, dentre aqueles que disputavam o jogo, que deveria fazer o gol mil, nada mais justo que fosse ele próprio o autor. O registro civil brasileiro denomina o ilustre futebolista como Fernando Lúcio da Costa. O universo colorado, no entanto, reverencia-o por sua imponente alcunha: Fernandão.

Tal como um ser mitológico, Fernandão chegou pelos ares, alvejando o rival com um míssil certeiro. Como se diz na minha terra, chegou chegando! Nos primeiros toques, notava-se algo diferente em campo. Tínhamos, agora, classe e inteligência. Multifuncional, movia-se pelo campo com soberba, seja como meia-cancha, seja como centroavante. Aos poucos, tivemos também uma liderança. O clube adquiriu, com sua chegada, uma força que até então eu nunca tinha presenciado, visto que pertenço à terrível geração dos anos 90. Gamarra era meu maior ídolo, até aquele momento. Um estupendo jogador, o melhor zagueiro que vi na vida, mas que conquistou apenas um gauchão. Pouco para um ídolo de um clube da grandeza do Inter. Os colorados dos anos 90 precisavam de um Falcão para chamar de seu. Eis que agora o tínhamos!

Se Fernandão fosse um personagem bíblico, certamente seria Moisés, porquanto nós - colorados que não viram os anos 40, 50 e 70 - fomos libertados, escravos que éramos da inaptidão para conquistas. Se Fernandão fosse um personagem político, sem dúvida seria Robespierre, pois trouxe a revolução decepando a cabeça de seus adversários, implacável que era. Se Fernandão fosse cientista, com certeza seria Charles Darwin, visto que trouxe à tona um novo roteiro para a origem das coisas, desabando com o mundinho fantasioso a que os rivais estavam acostumados. Quis o destino que Fernandão fosse maior do que tudo isso: o maior ídolo da história do Sport Club Internacional!

Dia 07 de junho fará um ano de sua morte precoce. A homenagem se faz obrigatória, pois ídolos dessa estirpe se eternizam em nossos corações.

E vejam só: tal como ele se nos apresentou, foi pelos ares que se nos despediu. Justo, pois assim são os seres mitológicos...

sexta-feira, 20 de março de 2015

Geração Registradora



Sou produto de um tempo curioso. Conheci o mundo com filme limitado a 24 fotos, o que constituía gravidade à escolha dos takes - faça a foto certa ou terá desperdiçado um tiro. Ainda pior: era necessário revelar a sessão de fotografia. Incontáveis as vezes em que se descobria que o filme da máquina, temperamental que era, simplesmente não havia funcionado. Foi-se o registro, foi-se o tempo que passou, e que nunca se recupera. O curioso da minha geração foi ter vivido isso, assim como vivo o mundo dos smartphones e paus de selfie. A diferença entre esses períodos é brutal! Considero-me afortunado por ter a experiência de viver mundos diferentes. A fortuna não se dá porque eu entenda que haja um necessário progresso, mas em razão de que sou humano, sendo característico da nossa natureza o gosto pelas experiências.



Como um experimentador, analiso os fenômenos que me cercam, com inevitável perturbação, levando-me à seguinte conclusão: há algo de profundamente errado no modo de viver da geração atual! 



Sou apaixonado pelas nomenclaturas. Considero que não há nada mais inteligente do que o poder de concisão do signo que se dá às coisas. Acho fantásticos os nomes das operações da Polícia Federal. Vejam, como exemplo, o nome da famosa atual: Operação Lava Jato. Que coisa magnífica! Reside sua genialidade em seu poder de conceito. Os nomes têm de trazer consigo a natureza da coisa nominada, senão não prestam; são disfuncionais. Logo, para tratar do tema em análise, considero fundamental que cheguemos a uma nomenclatura para designar a atual geração. Minha melhor ideia, até o momento, foi chamarmos esse conjunto de pessoas e de estado das coisas de "Geração Registradora". Numa relação antitética com a geração anterior, que não era hábil em registrar suas coisas, por carência tecnológica, tem-se um nome apropriado para a atual situação. O que sabemos fazer de melhor, hoje, é registrar. As tecnologias criadas instigaram um comportamento nunca antes visto socialmente. Porém, o que fazemos de pior, hoje, é registrar, por mais paradoxal que isso soe. É daí que inicio minha tese.



Nada como a narrativa dos fatos cotidianos para o embasamento do que se pretende argumentar. Pois vejam: em um concerto de rock de um artista internacional consagrado, estava eu, no alto dos meus 1,73m, tentando enxergar o que escutava. Afinal, não pagamos caro para escutar, pois isso fazemos em casa, na rua, na fazenda - ou numa casinha de sapê. Gastamos para ver - essa é a onda da coisa toda! Já não tenho mais idade para ficar em pista de show, visto que estou perto dos 30. Meu lance agora é curtir show sentado em cadeirinha, gritando "bravo" ao final da execução - ou um pouquinho antes do final da execução, numa demonstração de que não conheço realmente aquela música, que era lado B de um álbum obscuro. Mas lá estava eu, na pista. Perdi todos os melhores momentos do show, visto que uma massa de celulares foi alçada ao topo, ao arrepio do senso coletivo. Próximo de mim havia um sujeito com um tablet. Reparei que, após o término de suas gravações, ele sacava seu retumbante whatsapp (nunca havia visto um whatsapp em tablet, pois não tenho tablet - para mim, aquilo era retumbante, grandioso, um whats com W maiúsculo) a fim de repassar seu arquivo para um amigo desafortunado que, por alguma razão, não pôde pagar pelo show, mas que, na realidade, assistiu-o quase ao vivo, por uma espécie de teleconferência. Fiquei embasbacado com o tempo que o cidadão perdia para finalizar a gravação e postar sua bela filmagem ao seu contato, enquanto o show rolava. Tenho a nítida sensação de que essa pessoa não viveu o show, não o experenciou. Ele apenas registrou. Pelo visto, eu também não vivi o show, pois essa pessoa me distraiu sobremaneira, a ponto de notar todos os seus cliques. Tampouco registrei. Talvez ele tenha se dado melhor nessa...



Temos aí um belo exemplo do que essa geração é capaz! Registra-se tudo e transmite-se essa informação à velocidade da luz para pontos muito distantes. Porém, não se vive. As experiências atuais são rasas, descartáveis. Há uma avidez em fotografar, mas sem cuidado com o objeto, com a representatividade do momento,  com a importância em se estar naquele espaço e naquele exato tempo. A avidez possui função em si mesma: é registrar para registrar, tão somente. Com as redes sociais, há a exibição dos registros. Likes e shares se multiplicam, contudo dotados de um vazio irremediável. O quanto efetivamente se curte aquela trilionésima foto sobre a festinha dos amigos? No que consiste esse curtir?   Não seria uma retroalimentação do egocentrismo social a que estamos submetidos? Curto para que me curtam, pois devo ser curtido. Ninguém, na realidade, parece estar curtindo...



Como sou produto desse conflito geracional, seria hipócrita adotar um discurso de fora, visto que estou atolado nessa história. Já empunhei minha câmera ao alto em shows, já fiz selfies, já registrei mais do que vivi, já dei f5 no Face, em busca de mais likes na minha postagem. A diferença entre mim e boa parte das pessoas é que em algum momento minha ficha começou a cair. Isso passou a não parecer sadio. Havia alguma coisa profundamente errada comigo. E, de fato, havia. Saí do Facebook para me oxigenar como ser vivo e vejo que foi uma das coisas mais acertadas que fiz nos últimos tempos. Tornei-me produtivo como há anos não me sentia, letárgico que estava naquele mundinho virtual em que buscava sustentar meu ego. Já não levo mais máquinas em shows e tiro muito menos fotos do que antes. Selfie, nem pensar! Criei o movimento antisselfie, ainda quando estava no Facebook, mas ele evidentemente fracassou. E o que havia de errado comigo é o que há de errado com a nossa geração. Não que seja necessário sair do Face, deixar de tirar fotos etc. É preciso, somente, refletir sobre o que se está fazendo. O que nos leva a um determinado comportamento? Procuremos pensar um pouco sobre isso. Alguém tem de sair da toca e acusar o tirano. Para isso, estou aqui. Eis o meu convite: reflitamos sobre nós!



O último passo a dar é fazer um apelo à próxima geração, que desconhecerá por completo o que é uma máquina Olivetti: o que vocês pretendem para a vida de vocês? Experimentar ou registrar? Saber de tudo um pouco ou de um pouco quase tudo? Desvirtuar-se no virtualismo ou produzir no realismo? Não é necessário negar a tecnologia à disposição, mas não seria interessante fazer um uso racional e refletido dela? A tocha estará com vocês, em breve.

segunda-feira, 25 de agosto de 2014

A direita no divã

Fonte da imagem: mundobla.com.br


Não gosto de falar em direita e esquerda, porque se trata de uma simplificação dos diversos matizes políticos e econômicos que existem. Entretanto, ousarei fazer tal reducionismo, a fim de facilitar a compreensão do que se pretende dizer daqui em diante.

O problema da direita no Brasil é que não existe um cara sério que a represente. São apenas caricaturas, um bando de ignorantes primitivos. Torna-se fácil, assim, para a esquerda dominar o discurso político, surrar constantemente os adversários nas eleições, realizar conchavos a seu bel-prazer, infiltrar-se no seio cultural e acadêmico como única via ideológica possível. Chega de Bolsonaros e Felicianos! Essa gente é demente! Eles destroem a imagem da direita!

É possível falar em incentivo ao mercado livre, menos amarras estatais e ser liberal politicamente (sentido americano da palavra liberal). Também é possível ser conservador, com um discurso razoável, que defenda valores consagrados pela tradição sem um determinismo histórico, que esteja atento às mudanças sociais e culturais pelas quais passamos. Particularmente, alinho-me um pouco mais com essa segunda opção: liberal economicamente (sentido inglês) e conservador soft politicamente. Por que é tão difícil surgir alguém assim no Brasil? A coisa mais à direita que possui algum potencial de oposição efetiva é centro-esquerda, qual seja o PSDB. Não é só no nome: trata-se de um partido com programas fortemente sociais, que estabeleceu as agências reguladoras no mercado (isso é antiliberal na veia), que enxerga no estado forte uma necessidade econômica. A alcunha neoliberal ao PSDB é uma falácia! Trata-se de uma construção dos partidos outrora radicais de esquerda, a fim de posicionamento, de demarcação política. Afinal de contas, o pensamento marxista assim se estabelece: mediante a divisão das classes, do "eles" e "nós". Para sua consolidação, é necessária a ruptura social. Logo, é preciso haver a demonização da entidade que se apresente como detentora de poder. Sobrou para o PSDB, que se estabeleceu em importância a partir de 94, com a vitória de FHC. Portanto, o PSDB não é essa direita que cumpriria os pleitos de uma camada expressiva da população de uma forma mais bem articulada.

Retomo a pergunta: por que não surge alguém assim?

Começo pelo prisma individual. Observo que as pessoas que assim pensam não têm o discurso inflamado, sendo menos propensas a se reunir em prol de causas comuns. É evidente: isso, de certa forma, contraria sua natureza, pois o norte filosófico é o individualismo. Bem comum e programa ideológico são expressões malvistas por tais pessoas. Logo, diminuem-se as chances de haver reunião política, tampouco a formação de agremiações ou partidos. Em geral, são cidadãos que têm os seus empregos, que são ligados em política, mas que de modo algum sairiam às ruas para lutar por demandas políticas que lhes são próprias. Em junho de 2013, eles estavam assistindo à patuscada toda dos sofás de suas casas ou buzinando contra os manifestantes dentro de seus carros parados por mais de 3 horas.

Sob o prisma ambiental ou coletivo, é de se notar que o caldo cultural brasileiro demoniza o liberalismo econômico e o conservadorismo político. Confundem-se os seus pilares com os do tempo da ditadura militar. A formação intelectual brasileira, no plano político, foi forjada durante esse período, remanescendo até os dias atuais. O antiamericanismo surge daí, visto que os EUA incentivaram as ditaduras na América do Sul. Claro que o fato de haver uma guerra fria com a URSS nesse período, enquanto inflamavam-se as causas socialistas por esta região, é esquecido. O que sobrou disso tudo é um ódio aos americanos, ao seu imperialismo, ao seu sucesso econômico, sem a correspondência histórica às ações deste país. Portanto, para ser descolado por aqui é necessário se portar à esquerda.

Convenhamos, parece bonitinho ser de esquerda. Na superfície, são pessoas que defendem a igualdade, o respeito às minorias, o cuidado ambiental, o laicismo, a valorização da cultura suburbana, a função social da propriedade, entre vários outros pleitos. Como discordar de pessoas que defendem tais valores? O problema da esquerda reside sempre no modo. O que fazer para chegar a esses objetivos? Aí é que começa todo o problema... A demonização da direita passa por isso: defende-se que a direita é contra a igualdade, contra as minorias, contra o meio-ambiente, contra o laicismo, contra a contracultura etc. E aí chega um Bolsonaro da vida e confirma a tese esquerdista; por isso o seu desserviço. À verdadeira direita, aquela dotada de inteligência, cabe demonstrar que não! Ninguém em sã consciência pode ser contrário a isso! O que se deve combater são os meios que a esquerda propaga, bem como oferecer soluções para se atingi-los, sem devassar outros princípios também importantes, como a liberdade de produção, a isonomia na relação Estado-indivíduo, desenvolvimento econômico, liberdade religiosa, valorização da cultura tradicional, a defesa da propriedade individual etc.

Porém, quem se animaria a fazer isso? Prefiro reclamar em reuniões de bar, afirmar minha antipatia com a politicagem brasileira, fazer o meu trabalho e viver minha pacata vida. E assim seguimos dominados...

domingo, 9 de junho de 2013

Aborto: tentativa de solução para um tema perturbador







O aborto é, a meu ver, o tema mais complicado para apreciação, sob qualquer prisma (jurídico, biológico, filosófico, religioso). É natural do ser humano tomar partido em quaisquer questões, independentemente do número de fatores que o sujeito leva em consideração para pesar. Quanto mais fatores objetivos avaliados, tende-se a se aproximar de algum juízo racional e desprovido de uma passionalidade que em nada auxilia para a construção de um razoável pensamento analítico. Evito falar em certo e errado, pois trata-se de um tema que está acima de uma linguagem que se possa resolver de modo maniqueísta. Enfim, isso serve como uma preparação para que eu tente transmitir como entendo esse assunto árido, mas que merece uma profunda consideração, a fim de se construir algum tipo de paradigma que norteie as ações em sociedade, relativas à realização do aborto.



Essa é uma questão profundamente ligada a valores morais, não sendo casual o grande envolvimento das instituições religiosas, que se colocam como porta-vozes de uma massa considerável de pessoas que entendem ser errado o aborto. Não quero excluir o argumento religioso, - ele deve sim ser considerado, discutido, avaliado, pois todos os grupos merecem atenção, em se tratando de temas desta magnitude -, mas não será essa a abordagem que utilizarei. Tampouco lançarei mão de uma visão científica, que tende ao pragmatismo – o que não impede que se deva analisar o que a biologia diz a respeito da vida humana, porquanto é fundamental trazer à tona esses estudos com o fim de se estabelecer um instrumental teórico bem embasado e próximo da objetividade. Acredito, sim, que essa discussão deve primeiramente ser exaurida no campo da filosofia jurídica. Somente a partir daí poderemos buscar soluções no mundo jurídico, os quais tutelarão os direitos que decorrerem de um juízo bem fundamentado acerca da questão proposta.



Estabelecido o domínio em que se dará a linguagem, temos de especificar qual será exatamente o objeto de estudo. Ora, temos de definir o que exatamente suscita a polêmica em torno do ato aborto. Parece-nos que a questão valorativa de fundo diz respeito à preponderância entre princípios, quais sejam a vida do nascituro e a liberdade da mulher em dispor sobre seu corpo. Entretanto, antes de avançarmos nessa discussão, faz-se absolutamente necessário analisarmos algo mais profundo e perturbador: o que é exatamente a vida? Quando se inicia a vida? O que podemos chamar de vida humana?



Notem que é neste momento, e tão somente aí, que reside o espaço para que a biologia nos auxilie analiticamente, pois não há outra epistemologia mais qualificada para discutir a vida do que a ciência que cuida especificamente dela. Portanto, a biologia é instrumental, e não definitiva, para a consideração acerca do aborto. A biologia não possui o condão de discutir os princípios fundamentais colidentes, que compõem a discussão definitiva do tema. E é justamente por isso que não lanço mão da linguagem científica ou técnica para a solução; não obstante, busco utilizá-la no momento apropriado, qual seja a conceituação de vida.



Sem mais delongas, o que é a vida? Não será neste texto que se resolverá, certamente. A biologia não chegou a um consenso sobre o que é exatamente a vida. Ou melhor: não conseguiu ainda encerrar todos os elementos que conceituam a vida. Alguns elementos, entretanto, são facilmente verificáveis, os quais podemos listar: processo continuado de reações metabólicas e controlado pelo DNA, capacidade de reprodução, desenvolvimento e crescimento. Para o exame da vida humana, objeto deste artigo, satisfazemo-nos com esses elementos. Pois bem, quando a vida se inicia e o que diferirá a vida humana? Se antes tínhamos falta de consenso, agora temos um verdadeiro imbróglio! Sob o ponto de vista da genética, a fecundação marca o início da vida, pois há ali a caracterização de um DNA original. No entanto, há biólogos que entendem ser o momento em que o embrião se aloca no útero o marco inicial da vida. Isso se dá em cerca de 4 dias após a fecundação. Em 4 semanas, inicia o bater do coração, havendo defensores de que este é o início da vida. Em cerca de 8 semanas, o embrião passa a ser considerado feto, visto que todos os órgãos estão formados. Um outro grupo sugere ser o início da atividade cerebral a constituição da vida - ao menos a vida humana -, já que a morte é definida através da morte cerebral. Tal processo costuma ocorrer entre 6 e 24 semanas de gestação. A formação do sistema nervoso central, em 5 semanas, também é argumento para início da vida. Enfim, vê-se claramente a dificuldade de se encontrar uma resposta pacífica na biologia para a determinação da vida e da vida humana.



Pode-se inferir que, em todos esses processos, a não-interferência faz com que o ser evolua e progrida, etapa por etapa, até seu nascimento. Ou seja: há ali, desde a fecundação, um potencial de ser humano, se ainda não for considerado um ser humano. Isso me parece pacífico. O problema é definir exatamente o momento em que temos um ser humano! Se afirmarmos que se dá a partir da fecundação, temos sérios problemas de ordem prática a serem enfrentados. A pílula do dia seguinte, por exemplo, estaria sob o risco de se tornar ilegal, pois se estaria a exterminar com a vida humana com o seu uso. Isso soa, e com certa razão, como um grave retrocesso. Mas estamos lidando com uma questão de extrema dificuldade. Não podemos de modo algum dourar a pílula (neste caso, quase literalmente). É realmente perturbador o tema!



A biologia não ajuda muito no caso, como se percebe, mas, no pouco que ajuda, estabelece ao menos algumas diretrizes. Podemos escolher individualmente qual caminho seguir, pois já temos os caminhos definidos.



Passemos agora à análise da questão de fundo. Há uma clara colisão de princípios fundamentais, quais sejam: o direito à vida do nascituro e a liberdade da mulher, em sentido estrito, quanto à disposição de seu corpo. Assim como todos os princípios fundamentais, são indiscutíveis por si. Ninguém discute que o ser humano tem direito a viver e que a mulher deve ser livre, inclusive para fazer o que bem entender com seu corpo. Mas assim como todos os princípios fundamentais, eventualmente podem se chocar, obrigando-nos a avaliar qual deve preponderar, caso a caso. É o caso do aborto, como se percebe facilmente.



Supondo que estivéssemos diante de um caso pacífico, em que todos aceitassem que um determinado nascituro devesse ser considerado um ser humano (não vamos estipular, por ora, em qual estágio estaria este ser, a fim de se exercitar a abstração), deveria ser permitido ou proibido o aborto? Temos de um lado uma vida humana, com todos os direitos vinculados à individualidade, e de outro uma mulher, sujeito dotado de liberdade plena. E aí, meu caro, vida ou liberdade? Ora, respondo de pronto: vida. Por uma questão simples: só é possível exercer a liberdade havendo vida. A vida precede todo e qualquer direito; possibilita que se possa pretender direitos. Sem vida, não há falar em dignidade, por exemplo. Podemos viver sem dignidade, mas jamais podemos ser dignos sem vida. Sendo essencial, para a construção de direitos, a existência, torna-se imperioso que defendamos o existir acima de qualquer preço, desde que não implique na morte ou inexistência de outrem. Se há algo impossível de se avaliar é a qualidade entre as vidas; não há julgador que possa decidir acerca de qual vida possui mais valor, independentemente do caráter do indivíduo. Todas as vidas são igualmente defensáveis e dotadas dos mesmos direitos. E repito: só possuem direitos porque vivem! Desta forma, a colisão entre os princípios necessariamente implica na preponderância do direito à vida. A questão de fundo é resolvida de modo relativamente fácil. Porém, quem pensou que estava resolvido o debate, enganou-se redondamente! Agora, retornaremos àquele velho dilema: a vida, que é bonita e é bonita.



Se a biologia não define a vida humana, mas apenas indica modos distintos e possíveis de caracterizá-la, temos de obrigatoriamente construirmos uma lógica que nos leve a uma dessas vias, e assim encerrarmos o tema.



O fato de estarmos dialogando a partir de uma linguagem filosófica nos torna absolutamente livres, não estando engessados por dogmas de quaisquer espécies. Devido a isso, considero-a absolutamente adequada para o exercício que estamos construindo. Essa liberdade nos permite fazer escolhas que visem a soluções que levem em conta o maior benefício possível para o maior número de pessoas – utilitarismo -, respeitando a adequação dos meios, a fim de não se constituir um cenário frívolo e totalitário (o grande problema das possíveis implicações da filosofia utilitarista), nunca perdendo de vista a análise de preponderância de um dos princípios colidentes. Ademais, a rota tomada deve ser plana, lisa, sob o ponto de vista lógico-formal.



Assim, não precisamos nos prender a uma das formas que a biologia possibilita para que caracterizemos o início da vida humana, porquanto estamos completamente desligados de dogma e paixão, bem como a falta de consenso da biologia nos permite a escolha. No entanto, essa liberdade intelectual não impede que devamos argumentar com bases sólidas e expormos as razões para se chegar a uma resposta que atenda uma solução utilitarista e adequada em seus meios.



Dentre as diversas formas de se caracterizar o início da vida humana, julgo ser a relativa à formação cerebral a que melhor atende aos propósitos de se ter uma solução logicamente coerente e moralmente aceitável. As razões para tal juízo são de ordem intrínseca e de abrangência quanto às consequências que daí decorrem. Vou discriminar os argumentos, com o fito de organização:



a) Razão intrínseca: o cérebro é, sem dúvida, o constituinte mais importante do ser humano. Tudo parte deste órgão e responde aos seus comandos. A falência cerebral define a morte, de modo que podemos concluir que sem cérebro não há vida. A noção de individualidade, sob um ponto de vista neurocientífico, advém do cérebro. Ou seja: sem cérebro, não há ainda um indivíduo. Desta forma, não se constituindo ainda o ser sem cérebro em um indivíduo, podemos marcar a formação deste órgão como o delimitador da vida humana. Deve-se assinalar, também, que nesse estágio o embrião se torna um feto, pois passa a ter todos os órgãos necessários à vida. É evidente que um embrião em estágio acéfalo tem o potencial de formar cérebro, o que o torna um potencial ser humano. Porém, potência não é ser; é mera expectativa de ser, que pode ou não se cumprir. Pode-se discutir a ética em se interferir sobre uma potência, mas devemos ter em vista que há uma distinção de natureza do objeto/sujeito. Algo que é potência só passa a ser dotado de direitos passíveis de concretização no momento em que se realiza a expectativa que carregava consigo, tornando-se em ser. Isto é juridicamente importante, vejam. Os direitos abstratos distinguem-se dos concretos porque são modulações normativas generalistas, que independem da realização de determinado ato previsto na respectiva norma para ser eficaz. São eficazes por si. Contudo, tratam-se de previsões passíveis de concretização, isto é, que podem ser observadas no mundo real, gerando aqueles efeitos abstrativamente especificados. Quando estamos a analisar algo que é mera potência - ou melhor: que ainda não é ser -como poderíamos lhe conferir direitos, enquanto situados nesse estágio, considerando a impossibilidade de concretização de quaisquer pretensões daquela potência de ser? Desta forma, conclui-se que o direito à vida só se estabelece ao ser, enquanto a potência, como tal, possui mera expectativa de adquiri-lo, quando tiver sua formação plena que o identifique como ser constituído de vida. Ao entendermos que o órgão cérebro é o que confere a existência de uma vida humana, o embrião, em estágio anterior, não é postulante ainda do direito à vida, por ainda não tê-la.



b) Consequências: ao adotarmos esse entendimento, evitamos o constrangimento de nos colocarmos contrários à pílula do dia seguinte, sendo esta uma decorrência óbvia, se considerássemos que a vida humana iniciaria com a fecundação. É necessário deixar claro que não é esta a razão para a construção dessa solução (alguém poderia ser levado a crer que o objetivo deste artigo é fazer um meio termo, para tentar agradar a gregos e troianos. Não, definitivamente não é o caso!), porém devemos considerar que não há imoralidade em fixarmos o conceito de vida a partir de todos os aspectos envolvidos – pelo contrário, penso que enriquece a base pela qual nos sustentamos. Entendemos ser a formação cerebral a melhor resposta para o nosso questionamento acerca do que caracteriza a vida humana pelas razões intrínsecas já expostas, sendo as suas consequências meros aspectos acessórios, os quais reforçam a via adotada. Esta resposta também abrange, obviamente, a descriminalização do aborto até o período em que ainda não se formou plenamente o cérebro. Meus conhecimentos de medicina são nulos, porém creio piamente ser possível verificar a presença de cérebro em uma simples ecografia, podendo ser criada uma norma jurídica que faculte à análise específica de casos, sem fechar em um prazo rígido, pois não estamos tratando de algo rígido. Pelo que li brevemente, a formação cerebral se situa entre 6 e 24 semanas, do que entendi ser o período de início de sua formação até a sua plenitude. Disto também decorre a descriminalização do aborto de anencéfalos, pois a má formação cerebral é suficiente para tornar impossível a extensão daquela vida fora do ambiente uterino. É importante ressaltar que o feto anencéfalo tem uma vida humana, segundo esta lógica proposta, pois tem cérebro, embora mal formado. O que justificaria este aborto não seria a falta de vida, mas a certeza de que aquela vida não tem potencial após o parto, sendo desumano estender a sua existência, provocando-lhe um trauma desnecessário – o nascer, que talvez seja o evento mais traumático de todas as vidas -, bem como a desordem psicológica que se pode gerar na mãe, que é ciente de estar gerando um natimorto. Outra consequência seria a de se permitir e incentivar o aborto por meio de procedimentos médicos legalizados, evitando o descontrole e o perigo de se recorrer às clínicas ilegais. Assim, poderia haver uma regulamentação clara para tais procedimentos, tornando mais dignas as condições de aborto. Por fim, após a formação cerebral, a consequência é de proibição do ato abortivo, pois o direito à vida prepondera sobre quaisquer direitos, inclusive sobre o da gestante, independentemente do ato que tenha gerado o feto. A vida decorrente de estupro, por exemplo, ainda é uma vida, única, irrepetível e dotada de todos os direitos que se conferem aos indivíduos. Esse ser não tem culpa alguma do ato que o gerou. A solução para esses casos reside no aborto imediato, enquanto não houver sido formado o cérebro do feto. Portanto, não é a violência cometida ou não que deve estabelecer as razões para se abortar, pois não há nada que supere o direito à vida, mas reside simplesmente na análise do que define a vida e em que momento ela surge.



O argumento utilizado pela corrente que acredita haver a preponderância da liberdade da mulher para dispor de seu corpo sobre a vida do feto (inclusive o dotado plenamente de cérebro – e aí está a minha crítica a esta ala) gira em torno da ausência de dignidade que o próprio indivíduo gerado teria, a partir de seu nascimento, devido à tendência de que aquela mãe traumatizada – e com absoluta razão – rejeitaria tal filho. Em primeiro lugar, estamos sempre, neste caso, tratando de tendência. Não podemos permitir atos radicais, como a morte através de aborto, com base em uma possibilidade do que pode vir a acontecer. Em segundo lugar, mesmo que isso venha a ocorrer, a vida precede a dignidade e é indiscutível por si. A nossa vida não difere em qualidade da vida que um feto com plena formação cerebral carrega, de modo que não podemos ser juízes da interrupção daquela vida. “Ah, mas ele se tornará um marginal! Ah, será mais uma vida perdida, que gerará um problema para a sociedade. Ah, será um futuro assassino ou psicopata!” Essas afirmações são clássicas do grupo que adota esta linha de pensamento. Tudo isso não passa de mera especulação, primeiramente, e, mais grave ainda, incorre em um absurdo que lembra os horrores da limpeza étnica perpetrada por diversos sistemas totalitários. É bandido? Mata! É um perdido na vida? Mata! E isso que nem se pode afirmar com certeza que será exatamente esse o futuro desses seres...É um tanto inacreditável ter que tratar disto de uma forma tão crua, mas não vejo como falar de outro modo.



Assim, a solução que proponho para este dilema é a de se permitir o aborto até o período de formação cerebral, sendo proibido o ato após este período e devendo ser independente do ato que gera o embrião, com base em uma visão filosófica e jurídica, distanciando-se da linguagem religiosa e puramente científica – esta última prestando-se como instrumental -, do que é a vida humana e de uma ponderação entre princípios fundamentais que são colidentes neste caso. Ademais, buscou-se a maximização de efeitos benéficos aos diversos postulantes de direitos, tendo em vista que a indefinição de um conceito científico que encerre o debate abre a possibilidade de se considerar todas as hipóteses que auxiliem na consideração, além da própria consistência lógica que a escolha adotada deve possuir.



O que as pessoas têm de perceber é que estamos falando de algo extremamente delicado, difícil, triste e que não leva a nenhum caminho que traga paz de espírito. É um tema que tem de ser explorado com profundidade, sem que cheguemos a respostas rápidas. Aliás, a resposta que este artigo propõe não pretende ser definitiva, mas apenas reflete a forma como idealizo o assunto. A verdadeira intenção deste texto é deixar claro que escrevê-lo, refleti-lo, pensá-lo é simplesmente complicado, e que complicada é a vida, assim como defini-la.



*Nota de rodapé: aprendi que é enriquecedor dialogar com pessoas que julgo inteligentes a respeito do tema sobre o qual nos propomos a escrever. Em uma dessas conversas, um amigo trouxe à tona algo interessante, e que deve ser refletido por todos. A descriminalização de um determinado ato não implica em que se o tenha transformado em direito. Tal conceito se restringe tão somente à impunidade daquele ato, porém não diz respeito ao fato de ser este um ato ilícito. Um exemplo disso, no ordenamento jurídico brasileiro, é quanto ao uso de maconha, com a posse dentro do limite legal. Deixou de ser criminalizado o ato, porém não é direito de ninguém fumar um baseado. Não está escrito em lugar algum que tal ato deixou de ser ilícito. O aborto pode ser pensado desta forma, pois, por mais que definamos não haver vida em um embrião sem cérebro formado, não podemos dizer que se trata de um ato tranquilo, de fácil resolução, como se aquele amontoado de células não devesse ser minimamente respeitado.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Santa Maria e Renúncia do Papa: A Busca Humana por Respostas e Responsáveis




É da natureza humana a ânsia em encontrar resposta para todo fenômeno que parece estar ao nosso alcance - o que não está ao nosso alcance, também é perseguido insistentemente, diga-se. Criamos sistemas lógicos para esse fim, bem como métodos mais sofisticados de persecução da aproximação da verdade. Um exemplo de dedução seria algo como “se B gera C e A contém B, então A é a causa primordial de C”. Por outro lado, um método mais sofisticado envolveria a observação da natureza de A, B e C, derivar as suas relações, criar hipóteses e, por fim, testá-las em diferentes ambientes e circunstâncias, se possível for. Evidentemente, há um sistema lógico intrínseco a esse método, porém temos um grau de aferição superior, pois retiramos o objeto de estudo do estado hipotético, contido idealmente, e o colocamos no mundo real, para que possa se manifestar na prática. É claro que temos de reconhecer a limitação humana de observação, mas é inevitável verificarmos que há aí um avanço.

Por ora, tratamos apenas da distinção entre sistemas epistemológicos. Definitivamente, não é este o objetivo do texto. Sim, temos diferenças em abordarmos a realidade, ao tentarmos definir as causas para que as coisas sejam postas da forma como estão aí caracterizadas. Sim, e daí? Ora, estamos tratando nada mais nada menos do que todo o desespero da história humana em buscar respostas! A construção de sistemas dessa natureza é o resultado de um esforço intelectual que se origina desde o momento em que um ancestral se deparou com todo o ambiente a sua volta e o refletiu. “Se está chovendo, é porque algo ou alguém a origina. Se nascem frutas das quais posso me alimentar em uma árvore, é porque alguém quis assim. Se eu estou aqui, devo ter uma origem.” A teologia, a filosofia e as ciências humanas e exatas derivam dessa abordagem primordial, que aos poucos foi se sofisticando à medida em que alguns fenômenos foram se esclarecendo. Mas o que move isso, em primeira instância, é o desespero, a aflição. Não há maior abalo psicológico do que a falta de respostas, para o homem.

Os fenômenos podem ser divididos em naturais e antrópicos. Não há falar em culpa, quando estudamos o primeiro conjunto de fenômenos. Não se pode culpar a natureza, pois não se trata de ente consciente, portanto passível de responsabilidade. Da natureza, apenas se aceita. Ao contrário, quando lidamos com fenômenos antrópicos, falamos apropriadamente de responsabilidade. Se um homem originou tal ato, ele, e somente ele, deve ser responsabilizado, independentemente do juízo de valor que se faça do ato em si. Se ele provocou o bem-estar de outras pessoas, o agente, como responsável pela ação, será agraciado por esses sujeitos beneficiários. Se provocou o mal-estar, o agente será culpado, seja intencional ou não a sua ação. Evidentemente, a sua ação deve ser analisada cuidadosamente, para se lhe imputar a culpa. Ele pode ter agido de uma forma tal que tomara todas as precauções para não incorrer em determinada ação, evitando a negligência, imperícia ou imprudência. Neste caso, não se recorre à culpabilidade. Tanto é assim que é exatamente essa a definição jurídica de culpa, no âmbito criminal. O dolo é ilícito que envolve a capacidade subjetiva do agente em desejar a consequência prevista por uma ação sua. A culpa, em sentido restrito, por seu turno, envolve a possibilidade de se precaver em tal ato, a fim de não gerar a consequência prevista, mas não intencional. Perfeito! Mas não estamos aqui para tratar de conceitos jurídicos. O que se analisa é a incapacidade psicológica do ser humano em não encontrar uma resposta devida. É necessária uma causa, um responsável. Sem isso, perdemos o chão.

Dois eventos recentes trouxeram-me a essa reflexão, quais sejam a tragédia de Santa Maria e a renúncia do papa Bento XVI. No primeiro caso, houve uma espécie de unanimidade, por meio da imprensa, em apontar culpados para a desastrosa consequência de mais de duas centenas de vítimas. Os principais responsáveis noticiados foram os músicos, que utilizaram de pirotecnia em seu show, bem como os donos do estabelecimento, que revestiram o teto da casa de shows com espumas acústicas altamente inflamáveis, além de liberarem gases tóxicos a partir do incêndio. A soma dessas ações foi a causa do horror vivenciado por todos que ali estavam, e que chocou o mundo. O tamanho da tragédia parece exigir uma resposta. A partir daí, utiliza-se todo o recurso intelectual que o homem preparou: silogismo (se A carrega fogo, B dispõe de objeto inflamável e duas centenas de pessoas morrem em decorrência de incêndio, logo A e B são os culpados), método científico (perícia), fundamentação jurídica (conceito de culpa, dolo eventual, homicídio, crime), identificação do fenômeno (natural ou antrópico?). É intenso o esforço de se chegar a alguma explicação plausível para que tal evento trágico tenha ocorrido. Mas, e se não houver nenhum culpado? E se se verificar que o músico é somente mais uma vítima disso tudo? Ora, a pirotecnia é arte das mais antigas! A quantos eventos costumamos ir em que se utilizam de artefatos em combustão? Será que todos os pirotécnicos estão incorrendo em imprudência? Pelo que se conhece dos noticiários, os músicos estavam acostumados a utilizar o sinalizador em seus shows. Portanto, imperitos não eram. Seria imprudência ou, ainda pior, dolo eventual o ato que gerou essa catástrofe? Quanto aos donos do estabelecimento, seria realmente previsível que a espuma liberaria tais gases? Alguém realmente sabia disso antes deste evento? Depois que os peritos divulgaram a presença de tais gases no sistema respiratório das vítimas, ficou evidente a todos. Restou facilitado o julgamento moral, naquele instante: “ah, esses vis empresários que só visam ao lucro! Não se prestaram a adquirir as espumas acústicas que não liberam os gases e deu no que deu!” Mas espera aí: tu não sabias disso há um minuto! Como podes sair a julgar desta forma? Ademais, quem vende o produto não deveria também ser responsabilizado? E os vizinhos que se perturbariam, se o som não fosse abafado, também não possuem certo grau de culpa? Vejam que é bem possível estendermos o rol de responsáveis quase que ilimitadamente. Se possível, depositaremos em toda a humanidade tal responsabilidade!

Não desejo sair em defesa de ninguém. Convido-os somente à reflexão: há realmente um culpado ou só estamos atrás de um, ou mais, a fim de satisfazermos a nossa sanha por respostas, amplificada quando diante de um evento de tal impacto? Os meandros do caso nós não conhecemos com profundidade. Pode ter havido, sim, alguma espécie de negligência, imprudência ou imperícia, ou até dolo eventual, por que não? Porém, não podemos, de forma alguma, defender tal tese com base no noticioso. Por quê? Porque a imprensa alimenta a nossa sede por respostas. E digo mais: não está equivocada! Entretanto, por ser assim a sua natureza, não podemos simplesmente confiar toda a verdade a ela. Cabe-nos a reflexão, a análise crítica.

O segundo evento do qual pretendo tratar refere-se à renúncia inesperada de Bento XVI. O homem comum simplesmente não consegue crer que alguém pode se afastar de um cargo dotado de tanto poder somente por não se enxergar mais apto fisicamente. Por não crer nisto, o sujeito busca uma explicação heterodoxa, algo próximo à conspiração. Desde o anúncio da renúncia que se efetivará ao final do mês, ensaiaram-se algumas versões concorrentes à oficial, do porquê deste ato. Sinceramente, creio piamente na versão oficial. Aliás, acho de uma humildade e dignidade notáveis! Apesar do meu ateísmo, enxergo na Igreja Católica uma instituição de extrema relevância política, tendo em vista que estabelece diálogo com as mais diversas correntes religiosas. Ademais, é uma das principais defensoras de valores ocidentais, tais como a liberdade, democracia, unidade familiar e de ordem moral, que advém da própria dogmática católica. Concorde-se ou não com ela (eu discordo de muita coisa, diga-se), é de extrema importância haver um agente político que defenda tais valores, com o intuito de se dar voz a uma parcela respeitável da população ocidental que não vê no dito progressismo forçado uma saída melhor.

Em Bento XVI, vi um papa devotado a exercer esse papel, sem recorrer ao populismo de seu predecessor João Paulo II, sendo talvez essa discrição a responsável por seu baixo carisma. Entretanto, trata-se de um dos papas mais bem preparados ao cargo que se tem notícia. O seu conhecimento teológico e histórico é notável, cuja contribuição bibliográfica assim revela. A sua intransigência em defender os valores católicos é louvável, pois, como representante máximo da instituição, cabe justamente a ele preservar a doutrina, respeitando seus fieis e a tradição.

Ao contrário dos críticos, que veem na Igreja um obstáculo ao progresso, penso que o catolicismo nos trouxe muito mais benefícios do que prejuízos. A partir do momento em que houve a constituição do Estado Secular, com a devida separação da Igreja, estabeleceu-se um limite claro a ambos os entes, fazendo-os florescer suas capacidades sem que interferissem na liberdade dos indivíduos. O maior salto de progresso da humanidade se deveu justamente ao papel do Estado e da Igreja, a partir do fim do absolutismo e o início da era liberal. Evidentemente, a ciência e as tecnologias são os principais motores do nosso progresso, mas estes são produtos desta separação e do estabelecimento das atividades afins a cada ente. A Igreja, com o passar dos anos, soube assimilar a importância da ciência e deixou de fazer o enfrentamento que era característico no período medieval e absolutista. Com a limitação de seus poderes, o dogma e as tradições - que oriundam daquele -, ficaram restritos aos fieis! Toda pauta católica se dirige àqueles que assim creem, ao contrário do que geralmente se atribui, como se a Igreja tentasse ditar a moral de toda sociedade ocidental. E como representantes de uma parcela conservadora da sociedade, é necessário, sim, que os dirigentes superiores da Instituição defendam valores por muitos considerados ultrapassados. O ambiente democrático exige que se dê voz a todas as representações ideológicas, dentre as quais se encontra a Igreja Católica.

A fim de preservar tais valores, acredito que Bento XVI renunciou para que pudesse articular em vida a sua sucessão, considerando a onda de populismo que já invadiu o catolicismo. E, ciente de suas limitações físicas, assim o fez para que seu legado se mantivesse, ao menos a curto prazo.

Deste modo, não há por que tentar buscar explicações complexas para tal evento. Ele é bem mais simples do que parece ser e exigir. Novamente, temos aí uma manifestação da vontade inata do homem de achar uma razão abrangente, que seja tão grandiosa quanto a magnitude de uma ação, tal qual uma renúncia papal.

Portanto, enquanto um fenômeno antrópico – incêndio de Santa Maria – requer a responsabilidade de alguém, que não necessariamente deva existir, outro fenômeno antrópico – o ato da renúncia papal por Bento XVI – advém de um fenômeno natural, qual seja a debilidade física pela idade avançada, sendo absolutamente desnecessária a busca por uma razão superior. Já essa busca alucinadamente humana por respostas possui uma explicação bem clara: o horror que sentimos em ser reles mortais, limitados e minúsculos perante toda a grandiosidade universal.

domingo, 25 de novembro de 2012

A impossível Capela Sistina

A Criação de Adão (afresco da Capela Sistina, Vaticano) - Michelângelo Buonarroti


Michelângelo Buonarroti levou 4 anos para finalizar o teto da Capela Sistina. É possível que esta seja a grande realização artística da humanidade. Logo, é de se imaginar o esforço e a concentração de energia do artista para a produção de uma arte de imensa magnitude. A questão é: você, homem moderno, seria capaz de direcionar toda sua força, e por tanto tempo, a uma obra, seja ela qual for?

Não raras vezes perguntamo-nos por que a civilização contemporânea, em que pese o aparato tecnológico disponível, é tão pobre artisticamente, em comparação aos períodos históricos passados. Não há hoje um único gênio da grandeza de um Leonardo da Vinci, Shakespeare, Rembrandt, Chopin, Rodin, Dante Alighieri, Beethoven etc. Ao menos, não o há em relevância produtiva (pode haver, sim, um potencial artístico inexplorado). Uma das razões apontadas é justamente quanto ao fato destes gênios anteriores terem praticamente esgotado as formas de representação cujo encantamento pela beleza é despertado a um nível extremado por meio dos nossos sentidos. Ou seja: mesmo havendo um gênio hoje, ele estaria sufocado criativamente, porquanto impossibilitado a despertar sensações de comparativa relevância por meios originais, somente pelo fato de não haver mais novos paradigmas a ser construídos que equivalham em beleza às construções anteriores. Não descartando essa hipótese, acredito em outra razão para tal fenômeno: as facilidades tecnológicas tiram a atenção que um artista deve direcionar a uma obra, a fim de que ela seja grandiosa.

O mundo atual é fascinante pela capacidade de informação cada vez mais crescente de que dispomos com uma facilidade de acesso impressionante. São necessários alguns cliques em um computador para nos informarmos a respeito de quaisquer fenômenos que a humanidade conhece. E essa é a forma ativa de processamento de informação! Passivamente, somos bombardeados de novas informações somente ao ligarmos aparelhos tais como a televisão e rádio. Voltando à computação, podemos simplesmente armazenar informações em um HD, seja interno ou externo, prescindindo do cérebro para tal função. Isso é realmente incrível, mas é devido também a tal circunstância que o homem moderno é simplesmente incapaz de produzir obras de extrema profundidade. Em um primeiro plano, porque se distrai facilmente com as mais variadas informações, perdendo grande parte do seu tempo que poderia ser direcionada à feitura de uma produção artística. Em um segundo plano, porque a possibilidade de ter um verdadeiro extensor cerebral o torna destreinado para armazenar aquilo que interessa, por mais paradoxal que isso possa parecer. O que deveria facilitar é a causa para a inaptidão à grandiosidade! O desuso do cérebro o atrofia e faz com que se torne preguiçoso, quando instado a produzir em um nível de extrema complexidade. É necessário um denodo de Michelângelo para construir uma obra-prima! É realmente comovente imaginar como deve ter sido a vida deste homem durante os 4 anos em que pensou, comeu, trabalhou e dormiu a arte que estava construindo. Será que ele a faria, se tivesse de responder um e-mail, acessar o Facebook, perder-se no Google, informar-se no Wikipedia, assistir a uma série de TV para relaxar? Uma pessoa moderna, com esta gama de possibilidades que a tecnologia o traz, simplesmente não consegue se dedicar desta forma a uma realização qualquer. Estamos aqui tratando de arte, mas poderíamos tranquilamente estender a outras atividades humanas, tais como o pensamento científico e filosófico. O último grande gênio fora Einstein, e em sua época, início do século XX, não havia essa profusão de informações que temos hoje.

Não podemos desmerecer as obras atuais, mas é notório que há um abismo qualitativo nesta ingrata comparação com o passado. Ingrata, sim, pois somos mais críticos em relação ao período em que vivemos – faço agora um mea culpa. Tampouco podemos dizer que nenhum homem moderno é capaz de escapar a essa regra. Sempre há exceções! É possível, sim, que haja alguém talentoso e obstinado o suficiente para concentrar toda sua energia em prol de uma grande produção. De qualquer forma, não acredito que uma obra atual, feita sem essa obstinação de um Buonarroti, sobreviva ao tempo assim como as clássicas chegam até nós intactas. Não há nada como o passar do tempo, para a medição de qualidade de uma obra de arte. Terá a modernidade produzido algo grandioso, a não ser as próprias tecnologias, que parecem impedir o desenvolvimento de outras realizações profundamente? Será que a era de Steve Jobs não comporta um Michelângelo, para lhe dar beleza? Só o futuro dirá!

quarta-feira, 10 de outubro de 2012

A função social do palavrão




O palavrão, além de designar palavras extensas, é conceituado como uma expressão de baixo calão, geralmente com tom ofensivo. Por tal natureza, é costumeiramente repreendido o seu uso, sendo o sujeito educado, desde infante, a não o proferir em público. Porém, por mais deselegante que possa parecer a sua utilização, é inegável que o palavrão cumpre uma fundamental função social!

Ora, e qual seria a função social do palavrão? Simplesmente todas ligadas à manutenção da sanidade mental, o que implica em uma propensão à sadia relação do ego com o meio social.
Imaginemos uma cena corriqueira, tal como um quase acidente entre carros. Passado o susto, é comum verificar que ambos esbravejam e soltam o vasto repertório de palavras ofensivas, independente da culpa de um ou outro para aquele ato. Até o arrefecimento dos ânimos, segue-se o palavreado. E se o sujeito não soltasse essa raiva mediante as palavras, o que poderia ele fazer? Das duas, uma: ou ele chegaria às vias de fato em todas as oportunidades, ou ele seguraria isso consigo, até que não fosse mais possível manter-se são. Como poderia alguém tocar a sua vida, se todas as raivas fossem acumuladas? Daria pane no sistema, sem dúvida.

Além disso, o palavrão tem o condão de aproximar as classes sociais. Todos são idênticos, ao soltarem tais verbetes! Não há distinção de vocabulário, aí! Todos reconhecem um filho da puta, não? Agora, quantos reconhecerão um sacripanta? Imaginem uma cena na qual alguém te passa a perna. O que tu dirias? “Mas que sacripanta”? Ou, “mas que filho da puta”? A última, com certeza, condiz mais com o grau de sua indignação perante a trapaça da qual foi vítima. Não à toa que todos a utilizam, em detrimento do pudor.

Um cenário perfeito e que realiza essa função social com louvor é o estádio de futebol! Em que pese alguns arruaceiros que fazem de tudo para estragar o espetáculo, o estádio é frequentado pelas ditas “pessoas de bem”. Não gosto de maniqueísmo, mas vamos aceitar como “pessoas de bem” aquelas que se mantêm dentro dos limites aceitáveis de convivência social, que não transgridem seriamente as regras da esfera criminal e civil. Pois bem. Quase todas as pessoas desse espectro (não vou dizer todas, pois sempre há alguém demasiado purista – geralmente é um chato de galocha, mas deixa pra lá) soltam os mais variados palavrões, seja em direção ao árbitro, adversário, técnico ou a algum jogador ruim do próprio time. É como se fosse uma bolha social em que se permite tal comportamento, a fim de que as pessoas retornem ao cotidiano mais leves. O futebol é uma ferramenta completa de controle social, e muito devido a isso.

Outra característica do palavrão é quanto ao fato dele ser aceito em piadas e nos atos sexuais. Como é fácil perceber, tratam-se de ambientes transgressores, no bom sentido. A piada só é engraçada quanto transgride o bom senso, e o sexo é melhor na medida em que é mais proibitivo e privado. E o palavrão surge como um instrumento eficaz para a satisfação de ambos nichos. Assim como nem toda piada tem palavrão, nem todo sexo conta com palavras picantes e proibidas. Mas quando damos mais risada? E quando nos excitamos mais? Para bom entendedor, poucas palavras bastam...

Desta forma, sugiro uma reflexão: que tal darmos mais valor ao palavrão? Em vez de nos fiscalizarmos, como se fôssemos patrulheiros da moralidade, por que não nos soltarmos e permitirmos a sua utilização com tranquilidade? Palavrão é tudo de bom! Palavrão salva vidas! Salve o palavrão!