domingo, 9 de junho de 2013

Aborto: tentativa de solução para um tema perturbador







O aborto é, a meu ver, o tema mais complicado para apreciação, sob qualquer prisma (jurídico, biológico, filosófico, religioso). É natural do ser humano tomar partido em quaisquer questões, independentemente do número de fatores que o sujeito leva em consideração para pesar. Quanto mais fatores objetivos avaliados, tende-se a se aproximar de algum juízo racional e desprovido de uma passionalidade que em nada auxilia para a construção de um razoável pensamento analítico. Evito falar em certo e errado, pois trata-se de um tema que está acima de uma linguagem que se possa resolver de modo maniqueísta. Enfim, isso serve como uma preparação para que eu tente transmitir como entendo esse assunto árido, mas que merece uma profunda consideração, a fim de se construir algum tipo de paradigma que norteie as ações em sociedade, relativas à realização do aborto.



Essa é uma questão profundamente ligada a valores morais, não sendo casual o grande envolvimento das instituições religiosas, que se colocam como porta-vozes de uma massa considerável de pessoas que entendem ser errado o aborto. Não quero excluir o argumento religioso, - ele deve sim ser considerado, discutido, avaliado, pois todos os grupos merecem atenção, em se tratando de temas desta magnitude -, mas não será essa a abordagem que utilizarei. Tampouco lançarei mão de uma visão científica, que tende ao pragmatismo – o que não impede que se deva analisar o que a biologia diz a respeito da vida humana, porquanto é fundamental trazer à tona esses estudos com o fim de se estabelecer um instrumental teórico bem embasado e próximo da objetividade. Acredito, sim, que essa discussão deve primeiramente ser exaurida no campo da filosofia jurídica. Somente a partir daí poderemos buscar soluções no mundo jurídico, os quais tutelarão os direitos que decorrerem de um juízo bem fundamentado acerca da questão proposta.



Estabelecido o domínio em que se dará a linguagem, temos de especificar qual será exatamente o objeto de estudo. Ora, temos de definir o que exatamente suscita a polêmica em torno do ato aborto. Parece-nos que a questão valorativa de fundo diz respeito à preponderância entre princípios, quais sejam a vida do nascituro e a liberdade da mulher em dispor sobre seu corpo. Entretanto, antes de avançarmos nessa discussão, faz-se absolutamente necessário analisarmos algo mais profundo e perturbador: o que é exatamente a vida? Quando se inicia a vida? O que podemos chamar de vida humana?



Notem que é neste momento, e tão somente aí, que reside o espaço para que a biologia nos auxilie analiticamente, pois não há outra epistemologia mais qualificada para discutir a vida do que a ciência que cuida especificamente dela. Portanto, a biologia é instrumental, e não definitiva, para a consideração acerca do aborto. A biologia não possui o condão de discutir os princípios fundamentais colidentes, que compõem a discussão definitiva do tema. E é justamente por isso que não lanço mão da linguagem científica ou técnica para a solução; não obstante, busco utilizá-la no momento apropriado, qual seja a conceituação de vida.



Sem mais delongas, o que é a vida? Não será neste texto que se resolverá, certamente. A biologia não chegou a um consenso sobre o que é exatamente a vida. Ou melhor: não conseguiu ainda encerrar todos os elementos que conceituam a vida. Alguns elementos, entretanto, são facilmente verificáveis, os quais podemos listar: processo continuado de reações metabólicas e controlado pelo DNA, capacidade de reprodução, desenvolvimento e crescimento. Para o exame da vida humana, objeto deste artigo, satisfazemo-nos com esses elementos. Pois bem, quando a vida se inicia e o que diferirá a vida humana? Se antes tínhamos falta de consenso, agora temos um verdadeiro imbróglio! Sob o ponto de vista da genética, a fecundação marca o início da vida, pois há ali a caracterização de um DNA original. No entanto, há biólogos que entendem ser o momento em que o embrião se aloca no útero o marco inicial da vida. Isso se dá em cerca de 4 dias após a fecundação. Em 4 semanas, inicia o bater do coração, havendo defensores de que este é o início da vida. Em cerca de 8 semanas, o embrião passa a ser considerado feto, visto que todos os órgãos estão formados. Um outro grupo sugere ser o início da atividade cerebral a constituição da vida - ao menos a vida humana -, já que a morte é definida através da morte cerebral. Tal processo costuma ocorrer entre 6 e 24 semanas de gestação. A formação do sistema nervoso central, em 5 semanas, também é argumento para início da vida. Enfim, vê-se claramente a dificuldade de se encontrar uma resposta pacífica na biologia para a determinação da vida e da vida humana.



Pode-se inferir que, em todos esses processos, a não-interferência faz com que o ser evolua e progrida, etapa por etapa, até seu nascimento. Ou seja: há ali, desde a fecundação, um potencial de ser humano, se ainda não for considerado um ser humano. Isso me parece pacífico. O problema é definir exatamente o momento em que temos um ser humano! Se afirmarmos que se dá a partir da fecundação, temos sérios problemas de ordem prática a serem enfrentados. A pílula do dia seguinte, por exemplo, estaria sob o risco de se tornar ilegal, pois se estaria a exterminar com a vida humana com o seu uso. Isso soa, e com certa razão, como um grave retrocesso. Mas estamos lidando com uma questão de extrema dificuldade. Não podemos de modo algum dourar a pílula (neste caso, quase literalmente). É realmente perturbador o tema!



A biologia não ajuda muito no caso, como se percebe, mas, no pouco que ajuda, estabelece ao menos algumas diretrizes. Podemos escolher individualmente qual caminho seguir, pois já temos os caminhos definidos.



Passemos agora à análise da questão de fundo. Há uma clara colisão de princípios fundamentais, quais sejam: o direito à vida do nascituro e a liberdade da mulher, em sentido estrito, quanto à disposição de seu corpo. Assim como todos os princípios fundamentais, são indiscutíveis por si. Ninguém discute que o ser humano tem direito a viver e que a mulher deve ser livre, inclusive para fazer o que bem entender com seu corpo. Mas assim como todos os princípios fundamentais, eventualmente podem se chocar, obrigando-nos a avaliar qual deve preponderar, caso a caso. É o caso do aborto, como se percebe facilmente.



Supondo que estivéssemos diante de um caso pacífico, em que todos aceitassem que um determinado nascituro devesse ser considerado um ser humano (não vamos estipular, por ora, em qual estágio estaria este ser, a fim de se exercitar a abstração), deveria ser permitido ou proibido o aborto? Temos de um lado uma vida humana, com todos os direitos vinculados à individualidade, e de outro uma mulher, sujeito dotado de liberdade plena. E aí, meu caro, vida ou liberdade? Ora, respondo de pronto: vida. Por uma questão simples: só é possível exercer a liberdade havendo vida. A vida precede todo e qualquer direito; possibilita que se possa pretender direitos. Sem vida, não há falar em dignidade, por exemplo. Podemos viver sem dignidade, mas jamais podemos ser dignos sem vida. Sendo essencial, para a construção de direitos, a existência, torna-se imperioso que defendamos o existir acima de qualquer preço, desde que não implique na morte ou inexistência de outrem. Se há algo impossível de se avaliar é a qualidade entre as vidas; não há julgador que possa decidir acerca de qual vida possui mais valor, independentemente do caráter do indivíduo. Todas as vidas são igualmente defensáveis e dotadas dos mesmos direitos. E repito: só possuem direitos porque vivem! Desta forma, a colisão entre os princípios necessariamente implica na preponderância do direito à vida. A questão de fundo é resolvida de modo relativamente fácil. Porém, quem pensou que estava resolvido o debate, enganou-se redondamente! Agora, retornaremos àquele velho dilema: a vida, que é bonita e é bonita.



Se a biologia não define a vida humana, mas apenas indica modos distintos e possíveis de caracterizá-la, temos de obrigatoriamente construirmos uma lógica que nos leve a uma dessas vias, e assim encerrarmos o tema.



O fato de estarmos dialogando a partir de uma linguagem filosófica nos torna absolutamente livres, não estando engessados por dogmas de quaisquer espécies. Devido a isso, considero-a absolutamente adequada para o exercício que estamos construindo. Essa liberdade nos permite fazer escolhas que visem a soluções que levem em conta o maior benefício possível para o maior número de pessoas – utilitarismo -, respeitando a adequação dos meios, a fim de não se constituir um cenário frívolo e totalitário (o grande problema das possíveis implicações da filosofia utilitarista), nunca perdendo de vista a análise de preponderância de um dos princípios colidentes. Ademais, a rota tomada deve ser plana, lisa, sob o ponto de vista lógico-formal.



Assim, não precisamos nos prender a uma das formas que a biologia possibilita para que caracterizemos o início da vida humana, porquanto estamos completamente desligados de dogma e paixão, bem como a falta de consenso da biologia nos permite a escolha. No entanto, essa liberdade intelectual não impede que devamos argumentar com bases sólidas e expormos as razões para se chegar a uma resposta que atenda uma solução utilitarista e adequada em seus meios.



Dentre as diversas formas de se caracterizar o início da vida humana, julgo ser a relativa à formação cerebral a que melhor atende aos propósitos de se ter uma solução logicamente coerente e moralmente aceitável. As razões para tal juízo são de ordem intrínseca e de abrangência quanto às consequências que daí decorrem. Vou discriminar os argumentos, com o fito de organização:



a) Razão intrínseca: o cérebro é, sem dúvida, o constituinte mais importante do ser humano. Tudo parte deste órgão e responde aos seus comandos. A falência cerebral define a morte, de modo que podemos concluir que sem cérebro não há vida. A noção de individualidade, sob um ponto de vista neurocientífico, advém do cérebro. Ou seja: sem cérebro, não há ainda um indivíduo. Desta forma, não se constituindo ainda o ser sem cérebro em um indivíduo, podemos marcar a formação deste órgão como o delimitador da vida humana. Deve-se assinalar, também, que nesse estágio o embrião se torna um feto, pois passa a ter todos os órgãos necessários à vida. É evidente que um embrião em estágio acéfalo tem o potencial de formar cérebro, o que o torna um potencial ser humano. Porém, potência não é ser; é mera expectativa de ser, que pode ou não se cumprir. Pode-se discutir a ética em se interferir sobre uma potência, mas devemos ter em vista que há uma distinção de natureza do objeto/sujeito. Algo que é potência só passa a ser dotado de direitos passíveis de concretização no momento em que se realiza a expectativa que carregava consigo, tornando-se em ser. Isto é juridicamente importante, vejam. Os direitos abstratos distinguem-se dos concretos porque são modulações normativas generalistas, que independem da realização de determinado ato previsto na respectiva norma para ser eficaz. São eficazes por si. Contudo, tratam-se de previsões passíveis de concretização, isto é, que podem ser observadas no mundo real, gerando aqueles efeitos abstrativamente especificados. Quando estamos a analisar algo que é mera potência - ou melhor: que ainda não é ser -como poderíamos lhe conferir direitos, enquanto situados nesse estágio, considerando a impossibilidade de concretização de quaisquer pretensões daquela potência de ser? Desta forma, conclui-se que o direito à vida só se estabelece ao ser, enquanto a potência, como tal, possui mera expectativa de adquiri-lo, quando tiver sua formação plena que o identifique como ser constituído de vida. Ao entendermos que o órgão cérebro é o que confere a existência de uma vida humana, o embrião, em estágio anterior, não é postulante ainda do direito à vida, por ainda não tê-la.



b) Consequências: ao adotarmos esse entendimento, evitamos o constrangimento de nos colocarmos contrários à pílula do dia seguinte, sendo esta uma decorrência óbvia, se considerássemos que a vida humana iniciaria com a fecundação. É necessário deixar claro que não é esta a razão para a construção dessa solução (alguém poderia ser levado a crer que o objetivo deste artigo é fazer um meio termo, para tentar agradar a gregos e troianos. Não, definitivamente não é o caso!), porém devemos considerar que não há imoralidade em fixarmos o conceito de vida a partir de todos os aspectos envolvidos – pelo contrário, penso que enriquece a base pela qual nos sustentamos. Entendemos ser a formação cerebral a melhor resposta para o nosso questionamento acerca do que caracteriza a vida humana pelas razões intrínsecas já expostas, sendo as suas consequências meros aspectos acessórios, os quais reforçam a via adotada. Esta resposta também abrange, obviamente, a descriminalização do aborto até o período em que ainda não se formou plenamente o cérebro. Meus conhecimentos de medicina são nulos, porém creio piamente ser possível verificar a presença de cérebro em uma simples ecografia, podendo ser criada uma norma jurídica que faculte à análise específica de casos, sem fechar em um prazo rígido, pois não estamos tratando de algo rígido. Pelo que li brevemente, a formação cerebral se situa entre 6 e 24 semanas, do que entendi ser o período de início de sua formação até a sua plenitude. Disto também decorre a descriminalização do aborto de anencéfalos, pois a má formação cerebral é suficiente para tornar impossível a extensão daquela vida fora do ambiente uterino. É importante ressaltar que o feto anencéfalo tem uma vida humana, segundo esta lógica proposta, pois tem cérebro, embora mal formado. O que justificaria este aborto não seria a falta de vida, mas a certeza de que aquela vida não tem potencial após o parto, sendo desumano estender a sua existência, provocando-lhe um trauma desnecessário – o nascer, que talvez seja o evento mais traumático de todas as vidas -, bem como a desordem psicológica que se pode gerar na mãe, que é ciente de estar gerando um natimorto. Outra consequência seria a de se permitir e incentivar o aborto por meio de procedimentos médicos legalizados, evitando o descontrole e o perigo de se recorrer às clínicas ilegais. Assim, poderia haver uma regulamentação clara para tais procedimentos, tornando mais dignas as condições de aborto. Por fim, após a formação cerebral, a consequência é de proibição do ato abortivo, pois o direito à vida prepondera sobre quaisquer direitos, inclusive sobre o da gestante, independentemente do ato que tenha gerado o feto. A vida decorrente de estupro, por exemplo, ainda é uma vida, única, irrepetível e dotada de todos os direitos que se conferem aos indivíduos. Esse ser não tem culpa alguma do ato que o gerou. A solução para esses casos reside no aborto imediato, enquanto não houver sido formado o cérebro do feto. Portanto, não é a violência cometida ou não que deve estabelecer as razões para se abortar, pois não há nada que supere o direito à vida, mas reside simplesmente na análise do que define a vida e em que momento ela surge.



O argumento utilizado pela corrente que acredita haver a preponderância da liberdade da mulher para dispor de seu corpo sobre a vida do feto (inclusive o dotado plenamente de cérebro – e aí está a minha crítica a esta ala) gira em torno da ausência de dignidade que o próprio indivíduo gerado teria, a partir de seu nascimento, devido à tendência de que aquela mãe traumatizada – e com absoluta razão – rejeitaria tal filho. Em primeiro lugar, estamos sempre, neste caso, tratando de tendência. Não podemos permitir atos radicais, como a morte através de aborto, com base em uma possibilidade do que pode vir a acontecer. Em segundo lugar, mesmo que isso venha a ocorrer, a vida precede a dignidade e é indiscutível por si. A nossa vida não difere em qualidade da vida que um feto com plena formação cerebral carrega, de modo que não podemos ser juízes da interrupção daquela vida. “Ah, mas ele se tornará um marginal! Ah, será mais uma vida perdida, que gerará um problema para a sociedade. Ah, será um futuro assassino ou psicopata!” Essas afirmações são clássicas do grupo que adota esta linha de pensamento. Tudo isso não passa de mera especulação, primeiramente, e, mais grave ainda, incorre em um absurdo que lembra os horrores da limpeza étnica perpetrada por diversos sistemas totalitários. É bandido? Mata! É um perdido na vida? Mata! E isso que nem se pode afirmar com certeza que será exatamente esse o futuro desses seres...É um tanto inacreditável ter que tratar disto de uma forma tão crua, mas não vejo como falar de outro modo.



Assim, a solução que proponho para este dilema é a de se permitir o aborto até o período de formação cerebral, sendo proibido o ato após este período e devendo ser independente do ato que gera o embrião, com base em uma visão filosófica e jurídica, distanciando-se da linguagem religiosa e puramente científica – esta última prestando-se como instrumental -, do que é a vida humana e de uma ponderação entre princípios fundamentais que são colidentes neste caso. Ademais, buscou-se a maximização de efeitos benéficos aos diversos postulantes de direitos, tendo em vista que a indefinição de um conceito científico que encerre o debate abre a possibilidade de se considerar todas as hipóteses que auxiliem na consideração, além da própria consistência lógica que a escolha adotada deve possuir.



O que as pessoas têm de perceber é que estamos falando de algo extremamente delicado, difícil, triste e que não leva a nenhum caminho que traga paz de espírito. É um tema que tem de ser explorado com profundidade, sem que cheguemos a respostas rápidas. Aliás, a resposta que este artigo propõe não pretende ser definitiva, mas apenas reflete a forma como idealizo o assunto. A verdadeira intenção deste texto é deixar claro que escrevê-lo, refleti-lo, pensá-lo é simplesmente complicado, e que complicada é a vida, assim como defini-la.



*Nota de rodapé: aprendi que é enriquecedor dialogar com pessoas que julgo inteligentes a respeito do tema sobre o qual nos propomos a escrever. Em uma dessas conversas, um amigo trouxe à tona algo interessante, e que deve ser refletido por todos. A descriminalização de um determinado ato não implica em que se o tenha transformado em direito. Tal conceito se restringe tão somente à impunidade daquele ato, porém não diz respeito ao fato de ser este um ato ilícito. Um exemplo disso, no ordenamento jurídico brasileiro, é quanto ao uso de maconha, com a posse dentro do limite legal. Deixou de ser criminalizado o ato, porém não é direito de ninguém fumar um baseado. Não está escrito em lugar algum que tal ato deixou de ser ilícito. O aborto pode ser pensado desta forma, pois, por mais que definamos não haver vida em um embrião sem cérebro formado, não podemos dizer que se trata de um ato tranquilo, de fácil resolução, como se aquele amontoado de células não devesse ser minimamente respeitado.