terça-feira, 24 de abril de 2012

Barcelona espantoso





Que time fabuloso esse Barcelona atual! Não posso escolher outra frase para iniciar a presente crônica sobre a desclassificação do time catalão, na recente terça-feira, 24/04, diante do bravo Chelsea, em jogo válido pelas semifinais da Champions League.

Muitos poderiam pensar que eu cheguei a um grau extremo de insanidade ao tecer elogios dessa natureza a uma equipe derrotada. Danem-se, tais críticos! O fato é que somente um time espetacular é capaz de ser o protagonista inclusive em seus momentos mais frágeis. Sim, pois o Barcelona deteve a posse da bola em 73% do tempo jogado. Em um universo de 90 minutos, isso equivale a ter o controle da bola em 65 minutos e meio (essa é a proporção; é evidente que se fôssemos contar as bolas paradas teríamos menos tempo de jogo e, portanto, menos tempo de posse de bola).

Entretanto, nem é isso o que mais espanta. O que efetivamente assusta é o fato de que todas as pessoas sãs deste mundo, e que admiram o futebol, consideravam a desclassificação do Barcelona algo absolutamente surpreendente, constituindo em zebra (jargão clássico do futebol, quando uma equipe considerada bastante inferior ao oponente o vence) uma eventual vitória do Chelsea. E é por isso, justamente por essa consideração unânime, que o resultado desta partida trouxe tanta surpresa, podendo ser verificada através de uma análise dos perfis de Facebook e Twitter de todo o mundo, os quais comentaram incessantemente a respeito. Assusta, sim, pois não estamos falando de Barcelona versus XV de Jaú, mas do Chelsea, uma equipe não muito tradicional num plano histórico, é verdade, porém investida de uma enxurrada de valores econômicos oriundas de um empresário megalomaníaco, o qual tornou tal equipe em uma das grandes forças mundiais, que desde o início do presente século tem disputado fervorosamente os títulos. E quando tratamos de equipes fortes, e de futebol, não poderíamos considerar inaceitável a hipótese de que uma destas derrube a outra. Em tese, deveríamos ter a prudência de analisar o confronto sem arriscar um favorito. Repito: em tese! Quando falamos do Barcelona atual, todas as teses são destruídas, cabendo aos teóricos a compreensão do novo paradigma instaurado por esta equipe, para que possam, assim, organizar suas anotações a fim de refundarem suas teses. Só este time é capaz de causar espanto: tanto pelo que produz em campo quanto por uma eventual queda. Hoje, surpreendentemente, foi o dia da queda!

Ao analisarmos a partida (gravei o jogo, por impossibilidade de assisti-lo ao vivo. Analisei-o, portanto, sabendo do resultado), vemos que a equipe inglesa desistiu por absoluto de um esquema tático propositivo, mantendo seus 10 jogadores – após a expulsão do Terry, 9 – dentro ou em frente à área, formando um cinturão quase que intransponível. De novo, estamos falando de Chelsea! Trata-se de um timaço! Porém, é um timaço que tem a humildade de reconhecer a colossal inferioridade diante de um dos maiores times da história. Logo, acertadíssima a escolha do Di Matteo, técnico do Chelsea, em manter a equipe completamente defensiva, pois só assim é possível tomar o mínimo possível de gols. Sim, porque mesmo assim o Barcelona conseguiu por duas vezes chegar ao gol dos ingleses! Sem contar uma dezena de chances desperdiçadas pelos catalães, incluindo-se o pênalti desperdiçado pelo irreconhecível Messi – este, sim, muito aquém da sua normalidade, a qual, diga-se, é a anormalidade, a genialidade. Os gols do Chelsea, por sua vez, nasceram da casualidade, da vontade dos deuses. Em um raro momento de troca de passes, nasceu o primeiro gol do time inglês, em um lance à la Messi de Ramires, encobrindo Victor Valdés com um toque sutil na redondinha. O segundo gol, aquele que sepultou de vez o sonho dos espanhóis, nasceu de um balão desesperado do zagueiro para a frente, que casualmente encontrou Fernando Torres, livre, leve e solto, para que o centroavante driblasse o mediano – e extremamente abaixo dos companheiros de equipe, em qualidade técnica – goleiro do Barcelona e anotasse o tento. O resto da partida foi de um sufoco atroz imposto pela máquina de jogar futebol catalã, em um jogo de ataque contra defesa, com os craques fazendo rodar a bola em frente à área, procurando um espaço qualquer dentro desse bolo de “9 zagueiros” do Chelsea.

Imagino que deva ser de extrema complexidade criar lances de gol em uma situação dessas. Algo que só uma equipe como o Barcelona tem a capacidade de enfrentar! O que não foi o caso nesta terça-feira, mas que poderia ser em qualquer outro momento. Está certo que o time catalão não foi tão criativo como de costume, bem como demonstrou certo afobamento, principalmente no 2º tempo, mas, convenhamos, a dificuldade de penetrar uma área composta de 9 jogadores é absurda!

Aliás, é necessário dar a devida atenção para isso: o Chelsea jogou com todos os jogadores na defesa! Reitero: pô, é Chelsea! Não Íbis!!! Só esse fato demonstra o que significa o Barcelona de Messi, Xavi e Iniesta. Há vozes que começam a considerar a hipótese de que o ciclo de glórias se esgotou, baseando tal argumento nas 3 últimas partidas, em que o Barcelona acabou derrotado em duas e empatando nesta última. Ora, a minha tese é de que só poderá ser tido como desbancado esse time no momento em que as equipes adversárias conseguirem controlar a partida, com mais posse de bola, chute a gol etc. No atual estágio das coisas, as derrotas desta equipe se dão tão-somente por fatores fortuitos. Não há, ainda, uma quebra de paradigma! Ninguém neste mundo conseguiu ser efetivamente superior ao Barcelona, em que pese uma ou outra equipe ter obtido vitória em determinado confronto direto.


Estamos no século XXI, tempo de tecnologias avançadas e de futebol extremamente competitivo, cujo vigor físico só se eleva, dificultando a distinção técnica. E, espantosamente, o time catalão vive esse momento de uma forma tão soberba que parece ser de outro mundo. Ele é tão superior aos demais que acabamos esquecendo tratar-se de futebol, o esporte praticado por este time! O bom do esporte bretão é que ele nos lembra da sua natureza improvável em momentos como esse: nas quedas de um time tão assombroso!


quinta-feira, 19 de abril de 2012

Einstein, o nosso referencial: pulando na cama elástica!




Uma das grandes sacadas de Einstein foi compreender a união do espaço com o tempo, formando um tecido denominado “espaço-tempo”. A partir disso, entende-se o Universo, pelo menos no campo macrocósmico, como quadridimensional (não entraremos aqui na discussão da mecânica quântica e das diversas teorias das cordas, que entendem a geometria universal com mais dimensões espaciais recurvadas), somando-se às três dimensões espaciais uma dimensão temporal.

 Ao contrário do entendimento clássico da Física baseado na mecânica do gigante Isaac Newton, o tempo demonstrou-se relativo ao referencial, desfazendo-se o caráter absoluto de sua medida. O referencial, ou observador, possui uma escala de tempo própria, cujas medições darão um resultado que só a ele compete, conferindo à subjetividade uma primazia perante a objetividade jamais vista antes dentro do conhecimento científico – desde a sua consolidação metodológica na Idade Moderna -, embora na filosofia e nas artes já houvesse, em determinados períodos, escolas em que o prisma individual fora tratado como norte dos respectivos campos epistemológicos. Não obstante, a influência das teorias da relatividade na filosofia e nas artes foi contundente, tendo em vista, por exemplo, os movimentos cubista e surrealista, nas artes, e a consolidação do existencialismo e, principalmente, com a reação ao positivismo lógico, na filosofia. Foi o viés revolucionário da teoria de Einstein, bem como o seu enfoque no indivíduo, que trouxe à tona novamente, e com mais força do que outrora, a subjetividade como motora do conhecimento. 
 
A idéia subjacente à união espaço-temporal é a de que o movimento de um influi no outro. Eu, como referencial relativo, estou contido numa geometria, que forma o Universo, cuja função relaciona o espaço ao tempo de forma diretamente proporcional. Isto é, no momento em que me desloco no espaço, afeto o tempo, tornando-o tão mais vagaroso na medida em que aumento o meu movimento espacial. Em outras palavras, se estou parado, o tempo está correndo na sua velocidade máxima, que seria proporcional à velocidade da luz no vácuo. No breve movimento que efetuo, dentro do espaço tridimensional ao qual estamos todos contidos, torno o MEU tempo mais devagar. Entretanto, como vivemos a velocidades baixas de deslocamento, não percebemos a nossa interferência no tempo. Se viajássemos a velocidades próximas a da luz, nosso tempo percorreria muito vagarosamente. E se chegássemos a alcançar a velocidade da luz, pasme, o tempo pararia. Imagina-te nesta situação: ao viajar no espaço à velocidade de 300.000 Km/s, tu estagnarias no tempo, vivenciando para todo o sempre a tua condição atual. Chega a ser insano pensar nesta hipótese, mas ela é válida dentro da Física, e Einstein, de forma sublime e elegantíssima, apresentou-a com as teorias relativísticas. Só não fazemos isso porque, ao mesmo tempo, é impossível chegarmos sequer próximos à velocidade da luz, porquanto a famosa equação E=mc², contida na Teoria da Relatividade Especial (Restrita), nos impede de tal feito, pois como possuímos massa teríamos de despender uma energia infinita que nos levasse a acelerar a velocidade a tais quantidades. Porém, é possível fazermos experimentos que comprovam esta relação entre espaço e tempo, como, por exemplo, a partir de aviões a jato que se deslocam a uma velocidade alta o suficiente para tornarem a passagem do tempo, para o referencial de dentro do jato, inferior ao nosso, em termos de poucas frações de segundo, conforme já fora testado mediante relógios atômicos.

A nomenclatura das Teorias da Relatividade (Especial ou Restrita e Geral) não é à toa, embora não tenha sido ideia de Einstein nominá-las de tal modo. A primeira, concluída em 1905, refere-se à aplicação do referencial em um campo ausente de gravidade e cujos movimentos relativos entre si são constantes, isto é, ausentes de aceleração. Por isso mesmo, é especial ou restrita, tendo em vista que não se lhe aplica a generalização. Já com a segunda, publicada em 1915, há a presença de gravidade e os referenciais apresentam aceleração, portanto geral, aplicando-se a todo o movimento físico de objeto massivo.

As grandes contribuições da Teoria Especial (TRE ou TRR)foram a ligação da massa e energia, com aquela equação já narrada, demonstrando tratarem-se de mesma natureza (uma se converte na outra, nas dissipações quânticas ocorridas a partir da atuação das forças fundamentais. Por exemplo, quando uma partícula massiva se choca com outra, parte da massa dessa partícula se converte em energia), a compreensão da natureza da luz e de seu papel físico fundamental, incidindo sobre as nossas observações, bem como sendo o limite da velocidade de deslocamento (ou seja, nenhum efeito físico poderá ser observado antes que a luz nos alcance e o demonstre), e o entendimento, já explicitado aqui, quanto à relatividade do tempo conforme referenciais de movimento uniforme.

A Teoria da Relatividade Geral (TRG), por sua vez, deu o grande passo de que a Física Moderna necessitava, partindo desta base sólida que a TRR ou TRE havia dado, com a concepção gravitacional diversa da Lei de Newton, aprimorando-a numa escala macrocósmica. Em outras palavras, a Lei da Gravidade de Newton ia muito bem, obrigado, ao ser aplicada na Terra. Matematicamente, era perfeita para os experimentos possíveis à época, tendo, portanto, notável qualidade em seu conteúdo. Entretanto, numa escala universal, a matemática da consagrada lei newtoniana não correspondia aos resultados observados, como, por exemplo, a órbita de Mercúrio em torno do Sol. O aprimoramento de Einstein no estudo da gravidade, a partir da TRG, fez com que a descrição da órbita do pequeno planeta se adequasse perfeitamente aos cálculos.

A TRG trouxe o princípio da equivalência entre a aceleração e a gravidade, conferindo-lhes a mesma natureza. Quando me movimento no espaço aceleradamente, faço o meu tempo se tornar mais vagaroso, como eu já dissera. Ao mesmo passo, quanto maior o efeito gravitacional de um campo espacial qualquer, também passará mais devagar o tempo. Por quê?

Primeiramente, temos de mentalizar uma seguinte situação: um sujeito X se encontra numa espaçonave sem saber por que razão está ali, num ambiente completamente escuro, e deitado na parte correspondente à traseira. O movimento da espaçonave é uniforme, porém, em determinado momento, passa a acelerar sua velocidade. O efeito que o sujeito sentirá será uma pressão do seu corpo contra o chão, que no caso é a parte traseira. Parece-nos evidente que esse seria o efeito, considerando o nosso conhecimento prático de movimentos acelerados (freadas em ônibus, por exemplo). O sujeito X, totalmente perdido, poderia se encontrar na seguinte dúvida: seria este efeito produto da aceleração deste objeto ao qual estou contido, ou a gravidade que está agindo entre o meu corpo e o chão. A sua dúvida parece válida, pois, nessas condições, seria impossível distinguir entre uma e outra causa para este efeito. Esse exercício mental, portanto, é a chave para entendermos a estreita relação entre a gravidade e a aceleração.

Em segundo lugar, partindo do pressuposto de que são relacionadas – a aceleração e a gravidade -, temos de considerar a razão para que o tempo passe mais devagar nas situações em que ambas são intensas, e de forma proporcional. A chave para tal tesouro é aquilo que chamei, no início do texto, de uma das grandes sacadas de Einstein: o tecido do espaço-tempo. O gênio considerou que o Universo possui uma geometria plana, cuja tessitura é afetada conforme haja presença de corpos massivos em seu interior. Isto é, um objeto contendo massa causa curvatura no tecido do espaço-tempo. Mais uma vez, imagine algo assim: uma cama elástica que, sem a presença de objetos, é plana. No momento em que se coloca uma bola de 10 Kg sobre tal cama, o tecido desta sofre uma curvatura. Ato contínuo, ao sobrepô-la outro objeto esférico, porém de 2 Kg, o tecido também sofrerá uma curvatura, mas inferior àquela sentida pelo objeto anterior. Ao mesmo tempo, observar-se-á que a bola inferior será atraída para dentro do círculo curvado da bola superior. Deste modo, podemos considerar que o círculo curvado que se forma em torno do objeto é o correspondente ao campo gravitacional que um objeto massivo exerce. E é de se notar que ambos os objetos possuem seus próprios campos gravitacionais, bem como se distinguem de forma diretamente proporcional na medida das respectivas massas. 
 
Assim, infere-se que a causa da gravidade é a presença de objetos massivos no tecido do espaço-tempo. Portanto, quanto maior o objeto massivo, maior será o seu campo gravitacional. E, sendo a curvatura um dos efeitos da presença dos objetos em tal tecido, que é interligado entre espaço e tempo, quanto maior o objeto, mais devagar passa o tempo, porquanto se encontra mais curvado, em comparação ao efeito sentido por outro objeto menos massivo. 
 
A aceleração, no mesmo passo, causa curvatura no tecido do espaço-tempo, pois desloca gradativamente a velocidade contida na dimensão temporal para a dimensão espacial, tornando a primeira cada vez mais vagarosa. Quanto mais velocidade se aplica no deslocamento do objeto, mais rapidamente se movimenta no espaço, o que gera uma transferência da velocidade temporal (que, quando estamos inertes, é o da velocidade da luz), tendo em vista a estrita relação entre espaço e tempo, que devem sempre se manter equilibradas nas coordenadas geométricas que formam essa natureza de tecido ao qual estamos insertos. Descreve-se como uma função matemática essa condição natural! 
 
Desta forma, foi possível descrever a relatividade de forma generalizada, pois os movimentos acelerados também puderam se encaixar na descrição dos referenciais quanto ao espaço e ao tempo. Assim, Einstein trouxe ao conhecimento científico a democracia, a subjetividade, o individualismo. O meu tempo será sempre único e minhas observações são tão válidas quanto a de qualquer outro. E, até o presente momento, só sabemos de uma espécie no Universo capaz de ser um referencial: o ser humano. Quer uma vitória da humanidade maior do que essa? Por enquanto...

terça-feira, 3 de abril de 2012

Ideologia da liberdade e a liberdade de ideologia

Eugene Delacroix - A Liberdade Guiando o Povo


O conceito de liberdade é objeto das mais diversas interpretações e, basicamente, é pautado sob cores ideológicas, que acabam subordinando sua análise a um conjunto de valores fechado e pouco maleável, constituindo-se em dogma.

Primeiramente, temos de inferir que a liberdade é uma característica única do ser humano, ao menos aqui na Terra e do que conhecemos até então do Universo. Ora, por que um animal não-intelectual jamais pode ser livre?, perguntaria o curioso. A razão está na falta de capacidade deste ser em escapar aos desígnios naturais, em um primeiro plano. Por não ser dotado de consciência, o animal não-humano age conforme seus instintos, limitando a sua força aos agentes naturais com os quais fora premiado pela mãe natureza. Seu dote físico e suas ações instintivas, irracionais e selvagens são o único instrumental em que tal ser pode empreender. É um ser, também, impossibilitado de manufaturar, portanto jamais poderá ser um animal tecnológico. A tecnologia é, então, uma característica do ser livre, ou, mais adequadamente, uma consequência da liberdade. Portanto, só o ser humano possui as características que fazem nascer o conceito de liberdade, sendo restrito tal estudo a uma análise antropológica, a fim de identificar suas repercussões nas diversas áreas do conhecimento, mais notadamente na economia e política, que acabam gerando as diversas interpretações ideológicas. Nas artes também se verifica uma preocupação permanente com a relação da liberdade humana na criação aos seus limites, à preocupação quanto ao grau de rigidez (ou flexibilidade) da estética etc.

Em segundo lugar, é necessário, a partir da ideia da liberdade como um fator antropológico, estabelecer como se a constrói nas relações sociais, daí se originando as percepções ideológicas no que tange à política e economia. Cada sujeito opta por uma versão da história vinculada ao conjunto de valores que constitui a respectiva ideologia escolhida. É quase impossível ao indivíduo construir uma ideologia própria, pois a história está turvada pelas diferentes interpretações que os estudiosos apresentaram nessa caminhada humana. Em tese, os fatos se apresentam aos moldes dos vencedores, e invariavelmente determinados episódios acabam sendo reinterpretados, quando grupos de diverso matiz político tomam o poder, ou se tornam moda na cultura e costume de determinado período futuro ao fato histórico. Portanto, o sujeito que se interessa pela análise pura dos fenômenos sociais está prejudicado pelas versões predominantes ou colidentes, mas sempre versões. Não há espaço para uma construção imparcial de teses, pois estamos subordinados a este conhecimento precário do nosso passado, bem como a imparcialidade, mesmo que desejada, demonstra-se demasiadamente utópica, visto que o ser humano adota posições frente aos conceitos, sendo essa uma condição natural da espécie.

Em que pese as dificuldades narradas, podemos apresentar como alguns grupos ideológicos conceituam a liberdade nas relações sociais, sempre a partir de um prisma histórico, como se verifica de uma análise acurada dos grandes pensadores por trás desses movimentos filosóficos, políticos e econômicos. Resumidamente, há duas correntes modernas predominantes de conceituação da relação da liberdade individual com o laço social, de cuja base se originam as mais diversas facetas ideológicas. Tais filósofos, que erigiram bases sólidas para a posteridade do pensamento, são comumente denominados como “contratualistas”, pois veem as relações múltiplas como um contrato tácito que o indivíduo realiza com o seio social, a fim de proteger a sua própria liberdade. São os chamados contratos sociais. A diferença entre os pensadores reside na idealização que cada um fez do momento primitivo em que não havia tal relação de sociedade, bem como do momento em que acaba se construindo a ligação do sujeito a um corpo maior, partindo daí as divergências de conceituação. Dentre outros pensadores, destaco dois que podem ser tidos como representantes das duas escolas colidentes: Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. De uma forma rasa, bastante limitada mesmo, podemos afirmar que a diferença central está na natureza do homem selvagem, na comparação entre ambas as teorias. Enquanto para um pensador o “homem é o lobo do homem”, para outro o homem era um “bom selvagem”. Essa divergência explica todo o provir das respectivas teses de fundação da sociedade. A liberdade é encarada de modo completamente diverso, pois para Hobbes se não houvesse o laço social seria impossível falar em liberdade, tendo em vista a natureza agressiva e belicosa do ser humano, cuja anomia de uma região repleta dessa espécie seria levada à falência e destruição, pois com a ausência de limites à liberdade a própria acabaria sendo cerceada definitivamente em longo prazo. Ou, ao menos, restaria em poder dos homens mais fortes ou que tivessem à disposição as melhores tecnológicas bélicas da era primitiva. Com Rousseau, entretanto, o dever de laço social só surge a partir da corrupção do homem pela posse de bens e regiões naturais, gerando a desigualdade social. Ele vê um homem naturalmente bom, mas que quando agrega valor a objetos da natureza e os toma para si acaba criando condições de sofrimento alheio, pela escassez de recursos e controle sobre os indivíduos sem posses. Dada essa condição, a relação social, por meio do contrato tácito, passa a ser imperiosa, a fim de que se estabeleça mais dignidade entre os sujeitos, a partir de regras claras de conduta às quais todos se subordinam. Rousseau defende que se procure ao máximo voltar para a condição primitiva, buscando a boa natureza humana, através de medidas impeditivas à propriedade privada, representatividade direta na política e educação próxima da espartana, retirando os infantes do seio social para que não se corrompam seus valores individuais, e bons, segundo o entendimento do pensador.

Vê-se claramente aí a repercussão político-econômica que gera tais interpretações do momento originário do homem. É evidente que tais construções são, apesar de consistentes logicamente, metafísicas, não correspondendo a um método científico de análise histórica, pela ausência de documentos que corroborem quaisquer dessas teses. O que não impede, no entanto, que tais teorias sejam suficientes para basear uma gama imensa de ideologias presentes hoje, refletindo-se, obviamente, nas políticas de Estado adotadas. Embora pudéssemos aludir que essas duas correntes não encerram as ideologias, sendo esses conjuntos de valores produtos de uma série ilimitada de teorias, é possível afirmarmos que na raiz das divergências se encontra a distinção da natureza humana retratada nessas duas principais vertentes filosóficas. Temos, por exemplo, o socialismo científico, que é produto, dentre outros, de Hegel, Marx, Gramsci, Trotski. Já o liberalismo clássico conta com a contribuição de Adam Smith, John Locke, Ricardo, Voltaire, Milton Friedman, Ayn Rand etc. Mas a primeira ideologia bebe, em seu ponto originário, diretamente da corrente de Rousseau, enquanto a segunda ideologia tem como fulcro o modelo humano de Hobbes, em que pese esta corrente ter servido aos propósitos absolutistas, sendo John Locke o contratualista basilar do liberalismo. Entretanto, Locke não rompeu com a ideia do homem cruel por natureza, devendo a Hobbes tal construção. Desta forma, é Hobbes quem inicia tal idealização que constitui a base dos sistemas conservadores, dentre os quais se destaca a ideologia liberal clássica.



Uma tênue diferença de construção teórica enseja a maior discrepância possível no amálgama de valores que cada ideologia possui. É o fato de crer na boa natureza humana - e na corrupção do homem a partir da extração de bens do meio ambiente, agregando-lhes valor - o que gera todo o corpo de conhecimento de cunho socialista, pois se observarmos os pleitos de tal ideologia verificaremos que nada mais são do que tentativas de resgate a essa condição natural, segundo tal ideário. A revolução do proletariado visa a restabelecer a hipotética igualdade presente no ambiente primitivo, pois retira do indivíduo a propriedade, extermina com o sistema de heranças e educa os sujeitos para que culturalmente a ambição seja extirpada, a fim de se eliminar o egoísmo, em nome de um bem comum. Em um primeiro momento, designa ao Estado todo o poder, para que posteriormente os indivíduos possam controlar os meios de produção sem a interferência de um ente intermediário. Tal sistema crê que a verdadeira liberdade está presente somente nessas condições em que buscamos nossa verdadeira natureza, a de bom homem e altruísta. Em contrapartida, acreditando na má natureza humana é que se consolida o ideário liberal, pois o fato de sermos egoístas e ambiciosos é o que nos move na direção de adquirir excedentes materiais, a fim de atingirmos o conforto que julgamos necessário. E para tal empreendimento, é preciso um esforço pessoal que nos leva a progredir, empenhando todo o trabalho possível para a eficiência de nossa produção. Assim, com objetivos bem claros, desenvolvemos de uma forma mais acelerada as tecnologias, atingindo um aumento de satisfação social, em que pese a desigualdade econômica que surge a partir das diferenças naturais decorrentes das capacidades de cada indivíduo. O Estado deve ser minimamente dotado de poder, a fim de assegurar a segurança que possibilite ao ser humano desenvolver suas liberdades, não devendo interferir no mercado econômico e nos direitos políticos dos cidadãos. Neste caso, a liberdade reside na possibilidade de criação, produção, gerência, expressão e locomoção, sendo, inclusive, o ato de abrir mão parcialmente de sua liberdade, tal como a venda da força de trabalho como contraprestação do salário, um ato de liberdade.



São formas absolutamente distintas, como se vê, de se encarar a liberdade e sua relação com o social. Como eu dissera, é quase impossível nos desvincularmos dessas ideologias. Podemos dizer, paradoxalmente, que não somos livres para escolhermos um conceito de liberdade, pois invariavelmente chegaremos a posições que, no mínimo, se aproximarão muito de um dos dogmas apresentados. E isso se dará sem que o queiramos, pois a narrativa histórica está vinculada a essas distorções da realidade, cuja única possibilidade é vislumbrar um espectro bem turvo que representa o que chamamos de real.



Ao menos, é interessante sabermos as origens das ideologias, a fim de que saibamos distinguir de uma forma mais adequada qual posição tomar. Ao mesmo tempo, serve para que possamos identificar as virtudes e defeitos de cada uma, numa tentativa desesperada de alcançarmos, na melhor das hipóteses, uma liberdade de pensamento, não se restringindo a uma cartilha enlatada e bastante usada. Para se alcançar algo próximo da liberdade, é preciso primeiramente buscar a luz própria!



Que ela chegue a nós!