É da natureza humana a
ânsia em encontrar resposta para todo fenômeno que parece estar ao
nosso alcance - o que não está ao nosso alcance, também é
perseguido insistentemente, diga-se. Criamos sistemas lógicos para
esse fim, bem como métodos mais sofisticados de persecução da
aproximação da verdade. Um exemplo de dedução seria algo como “se
B gera C e A contém B, então A é a causa primordial de C”. Por
outro lado, um método mais sofisticado envolveria a observação da
natureza de A, B e C, derivar as suas relações, criar hipóteses e,
por fim, testá-las em diferentes ambientes e circunstâncias, se
possível for. Evidentemente, há um sistema lógico intrínseco a
esse método, porém temos um grau de aferição superior, pois
retiramos o objeto de estudo do estado hipotético, contido
idealmente, e o colocamos no mundo real, para que possa se manifestar
na prática. É claro que temos de reconhecer a limitação humana de
observação, mas é inevitável verificarmos que há aí um avanço.
Por ora, tratamos
apenas da distinção entre sistemas epistemológicos.
Definitivamente, não é este o objetivo do texto. Sim, temos
diferenças em abordarmos a realidade, ao tentarmos definir as causas
para que as coisas sejam postas da forma como estão aí
caracterizadas. Sim, e daí? Ora, estamos tratando nada mais nada
menos do que todo o desespero da história humana em buscar
respostas! A construção de sistemas dessa natureza é o resultado
de um esforço intelectual que se origina desde o momento em que um
ancestral se deparou com todo o ambiente a sua volta e o refletiu.
“Se está chovendo, é porque algo ou alguém a origina. Se nascem
frutas das quais posso me alimentar em uma árvore, é porque alguém
quis assim. Se eu estou aqui, devo ter uma origem.” A teologia, a
filosofia e as ciências humanas e exatas derivam dessa abordagem
primordial, que aos poucos foi se sofisticando à medida em que
alguns fenômenos foram se esclarecendo. Mas o que move isso, em
primeira instância, é o desespero, a aflição. Não há maior
abalo psicológico do que a falta de respostas, para o homem.
Os fenômenos podem ser
divididos em naturais e antrópicos. Não há falar em culpa, quando
estudamos o primeiro conjunto de fenômenos. Não se pode culpar a
natureza, pois não se trata de ente consciente, portanto passível
de responsabilidade. Da natureza, apenas se aceita. Ao contrário,
quando lidamos com fenômenos antrópicos, falamos apropriadamente de
responsabilidade. Se um homem originou tal ato, ele, e somente ele,
deve ser responsabilizado, independentemente do juízo de valor que
se faça do ato em si. Se ele provocou o bem-estar de outras pessoas,
o agente, como responsável pela ação, será agraciado por esses
sujeitos beneficiários. Se provocou o mal-estar, o agente será
culpado, seja intencional ou não a sua ação. Evidentemente, a sua
ação deve ser analisada cuidadosamente, para se lhe imputar a
culpa. Ele pode ter agido de uma forma tal que tomara todas as
precauções para não incorrer em determinada ação, evitando a
negligência, imperícia ou imprudência. Neste caso, não se recorre
à culpabilidade. Tanto é assim que é exatamente essa a definição
jurídica de culpa, no âmbito criminal. O dolo é ilícito que
envolve a capacidade subjetiva do agente em desejar a consequência
prevista por uma ação sua. A culpa, em sentido restrito, por seu
turno, envolve a possibilidade de se precaver em tal ato, a fim de
não gerar a consequência prevista, mas não intencional. Perfeito!
Mas não estamos aqui para tratar de conceitos jurídicos. O que se
analisa é a incapacidade psicológica do ser humano em não
encontrar uma resposta devida. É necessária uma causa, um
responsável. Sem isso, perdemos o chão.
Dois eventos recentes
trouxeram-me a essa reflexão, quais sejam a tragédia de Santa Maria
e a renúncia do papa Bento XVI. No primeiro caso, houve uma espécie
de unanimidade, por meio da imprensa, em apontar culpados para a
desastrosa consequência de mais de duas centenas de vítimas. Os
principais responsáveis noticiados foram os músicos, que utilizaram
de pirotecnia em seu show, bem como os donos do estabelecimento, que
revestiram o teto da casa de shows com espumas acústicas altamente
inflamáveis, além de liberarem gases tóxicos a partir do incêndio.
A soma dessas ações foi a causa do horror vivenciado por todos que
ali estavam, e que chocou o mundo. O tamanho da tragédia parece
exigir uma resposta. A partir daí, utiliza-se todo o recurso
intelectual que o homem preparou: silogismo (se A carrega fogo, B
dispõe de objeto inflamável e duas centenas de pessoas morrem em
decorrência de incêndio, logo A e B são os culpados), método
científico (perícia), fundamentação jurídica (conceito de culpa,
dolo eventual, homicídio, crime), identificação do fenômeno
(natural ou antrópico?). É intenso o esforço de se chegar a alguma
explicação plausível para que tal evento trágico tenha ocorrido.
Mas, e se não houver nenhum culpado? E se se verificar que o músico
é somente mais uma vítima disso tudo? Ora, a pirotecnia é arte das
mais antigas! A quantos eventos costumamos ir em que se utilizam de
artefatos em combustão? Será que todos os pirotécnicos estão
incorrendo em imprudência? Pelo que se conhece dos noticiários, os
músicos estavam acostumados a utilizar o sinalizador em seus shows.
Portanto, imperitos não eram. Seria imprudência ou, ainda pior,
dolo eventual o ato que gerou essa catástrofe? Quanto aos donos do
estabelecimento, seria realmente previsível que a espuma liberaria
tais gases? Alguém realmente sabia disso antes deste evento? Depois
que os peritos divulgaram a presença de tais gases no sistema
respiratório das vítimas, ficou evidente a todos. Restou facilitado
o julgamento moral, naquele instante: “ah, esses vis empresários
que só visam ao lucro! Não se prestaram a adquirir as espumas
acústicas que não liberam os gases e deu no que deu!” Mas espera
aí: tu não sabias disso há um minuto! Como podes sair a julgar
desta forma? Ademais, quem vende o produto não deveria também ser
responsabilizado? E os vizinhos que se perturbariam, se o som não
fosse abafado, também não possuem certo grau de culpa? Vejam que é
bem possível estendermos o rol de responsáveis quase que
ilimitadamente. Se possível, depositaremos em toda a humanidade tal
responsabilidade!
Não desejo sair em
defesa de ninguém. Convido-os somente à reflexão: há realmente um
culpado ou só estamos atrás de um, ou mais, a fim de satisfazermos
a nossa sanha por respostas, amplificada quando diante de um evento
de tal impacto? Os meandros do caso nós não conhecemos com
profundidade. Pode ter havido, sim, alguma espécie de negligência,
imprudência ou imperícia, ou até dolo eventual, por que não?
Porém, não podemos, de forma alguma, defender tal tese com base no
noticioso. Por quê? Porque a imprensa alimenta a nossa sede por
respostas. E digo mais: não está equivocada! Entretanto, por ser
assim a sua natureza, não podemos simplesmente confiar toda a
verdade a ela. Cabe-nos a reflexão, a análise crítica.
O segundo evento do
qual pretendo tratar refere-se à renúncia inesperada de Bento XVI.
O homem comum simplesmente não consegue crer que alguém pode se
afastar de um cargo dotado de tanto poder somente por não se
enxergar mais apto fisicamente. Por não crer nisto, o sujeito busca
uma explicação heterodoxa, algo próximo à conspiração. Desde o
anúncio da renúncia que se efetivará ao final do mês,
ensaiaram-se algumas versões concorrentes à oficial, do porquê
deste ato. Sinceramente, creio piamente na versão oficial. Aliás,
acho de uma humildade e dignidade notáveis! Apesar do meu ateísmo,
enxergo na Igreja Católica uma instituição de extrema relevância
política, tendo em vista que estabelece diálogo com as mais
diversas correntes religiosas. Ademais, é uma das principais
defensoras de valores ocidentais, tais como a liberdade, democracia,
unidade familiar e de ordem moral, que advém da própria dogmática
católica. Concorde-se ou não com ela (eu discordo de muita coisa,
diga-se), é de extrema importância haver um agente político que
defenda tais valores, com o intuito de se dar voz a uma parcela
respeitável da população ocidental que não vê no dito
progressismo forçado uma saída melhor.
Em Bento XVI, vi um
papa devotado a exercer esse papel, sem recorrer ao populismo de seu
predecessor João Paulo II, sendo talvez essa discrição a
responsável por seu baixo carisma. Entretanto, trata-se de um dos
papas mais bem preparados ao cargo que se tem notícia. O seu
conhecimento teológico e histórico é notável, cuja contribuição
bibliográfica assim revela. A sua intransigência em defender os
valores católicos é louvável, pois, como representante máximo da
instituição, cabe justamente a ele preservar a doutrina,
respeitando seus fieis e a tradição.
Ao contrário dos
críticos, que veem na Igreja um obstáculo ao progresso, penso que o
catolicismo nos trouxe muito mais benefícios do que prejuízos. A
partir do momento em que houve a constituição do Estado Secular,
com a devida separação da Igreja, estabeleceu-se um limite claro a
ambos os entes, fazendo-os florescer suas capacidades sem que
interferissem na liberdade dos indivíduos. O maior salto de
progresso da humanidade se deveu justamente ao papel do Estado e da
Igreja, a partir do fim do absolutismo e o início da era liberal.
Evidentemente, a ciência e as tecnologias são os principais motores
do nosso progresso, mas estes são produtos desta separação e do
estabelecimento das atividades afins a cada ente. A Igreja, com o
passar dos anos, soube assimilar a importância da ciência e deixou
de fazer o enfrentamento que era característico no período medieval
e absolutista. Com a limitação de seus poderes, o dogma e as
tradições - que oriundam daquele -, ficaram restritos aos fieis!
Toda pauta católica se dirige àqueles que assim creem, ao contrário
do que geralmente se atribui, como se a Igreja tentasse ditar a moral
de toda sociedade ocidental. E como representantes de uma parcela
conservadora da sociedade, é necessário, sim, que os dirigentes
superiores da Instituição defendam valores por muitos considerados
ultrapassados. O ambiente democrático exige que se dê voz a todas
as representações ideológicas, dentre as quais se encontra a
Igreja Católica.
A fim de preservar tais
valores, acredito que Bento XVI renunciou para que pudesse articular
em vida a sua sucessão, considerando a onda de populismo que já
invadiu o catolicismo. E, ciente de suas limitações físicas, assim
o fez para que seu legado se mantivesse, ao menos a curto prazo.
Deste modo, não há
por que tentar buscar explicações complexas para tal evento. Ele é
bem mais simples do que parece ser e exigir. Novamente, temos aí uma
manifestação da vontade inata do homem de achar uma razão
abrangente, que seja tão grandiosa quanto a magnitude de uma ação,
tal qual uma renúncia papal.
Portanto, enquanto um
fenômeno antrópico – incêndio de Santa Maria – requer a
responsabilidade de alguém, que não necessariamente deva existir,
outro fenômeno antrópico – o ato da renúncia papal por Bento XVI
– advém de um fenômeno natural, qual seja a debilidade física
pela idade avançada, sendo absolutamente desnecessária a busca por
uma razão superior. Já essa busca alucinadamente humana por
respostas possui uma explicação bem clara: o horror que sentimos em
ser reles mortais, limitados e minúsculos perante toda a
grandiosidade universal.
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