Eugene Delacroix - A Liberdade Guiando o Povo |
O
conceito de liberdade é objeto das mais diversas interpretações e,
basicamente, é pautado sob cores ideológicas, que acabam
subordinando sua análise a um conjunto de valores fechado e pouco
maleável, constituindo-se em dogma.
Primeiramente,
temos de inferir que a liberdade é uma característica única do ser
humano, ao menos aqui na Terra e do que conhecemos até então do
Universo. Ora, por que um animal não-intelectual jamais pode ser
livre?, perguntaria o curioso. A razão está na falta de capacidade
deste ser em escapar aos desígnios naturais, em um primeiro plano.
Por não ser dotado de consciência, o animal não-humano age
conforme seus instintos, limitando a sua força aos agentes naturais
com os quais fora premiado pela mãe natureza. Seu dote físico e
suas ações instintivas, irracionais e selvagens são o único
instrumental em que tal ser pode empreender. É um ser, também,
impossibilitado de manufaturar, portanto jamais poderá ser um animal
tecnológico. A tecnologia é, então, uma característica do ser
livre, ou, mais adequadamente, uma consequência da liberdade.
Portanto, só o ser humano possui as características que fazem
nascer o conceito de liberdade, sendo restrito tal estudo a uma
análise antropológica, a fim de identificar suas repercussões nas
diversas áreas do conhecimento, mais notadamente na economia e
política, que acabam gerando as diversas interpretações
ideológicas. Nas artes também se verifica uma preocupação
permanente com a relação da liberdade humana na criação aos seus
limites, à preocupação quanto ao grau de rigidez (ou
flexibilidade) da estética etc.
Em
segundo lugar, é necessário, a partir da ideia da liberdade como um
fator antropológico, estabelecer como se a constrói nas relações
sociais, daí se originando as percepções ideológicas no que tange
à política e economia. Cada sujeito opta por uma versão da
história vinculada ao conjunto de valores que constitui a respectiva
ideologia escolhida. É quase impossível ao indivíduo construir uma
ideologia própria, pois a história está turvada pelas diferentes
interpretações que os estudiosos apresentaram nessa caminhada
humana. Em tese, os fatos se apresentam aos moldes dos vencedores, e
invariavelmente determinados episódios acabam sendo reinterpretados,
quando grupos de diverso matiz político tomam o poder, ou se tornam
moda na cultura e costume de determinado período futuro ao fato
histórico. Portanto, o sujeito que se interessa pela análise pura
dos fenômenos sociais está prejudicado pelas versões predominantes
ou colidentes, mas sempre versões. Não há espaço para uma
construção imparcial de teses, pois estamos subordinados a este
conhecimento precário do nosso passado, bem como a imparcialidade,
mesmo que desejada, demonstra-se demasiadamente utópica, visto que o
ser humano adota posições frente aos conceitos, sendo essa uma
condição natural da espécie.
Em que
pese as dificuldades narradas, podemos apresentar como alguns grupos
ideológicos conceituam a liberdade nas relações sociais, sempre a
partir de um prisma histórico, como se verifica de uma análise
acurada dos grandes pensadores por trás desses movimentos
filosóficos, políticos e econômicos. Resumidamente, há duas
correntes modernas predominantes de conceituação da relação da
liberdade individual com o laço social, de cuja base se originam as
mais diversas facetas ideológicas. Tais filósofos, que erigiram
bases sólidas para a posteridade do pensamento, são comumente
denominados como “contratualistas”, pois veem as relações
múltiplas como um contrato tácito que o indivíduo realiza com o
seio social, a fim de proteger a sua própria liberdade. São os
chamados contratos sociais. A diferença entre os pensadores reside
na idealização que cada um fez do momento primitivo em que não
havia tal relação de sociedade, bem como do momento em que acaba se
construindo a ligação do sujeito a um corpo maior, partindo daí as
divergências de conceituação. Dentre outros pensadores, destaco
dois que podem ser tidos como representantes das duas escolas
colidentes: Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. De uma forma rasa,
bastante limitada mesmo, podemos afirmar que a diferença central
está na natureza do homem selvagem, na comparação entre ambas as
teorias. Enquanto para um pensador o “homem é o lobo do homem”,
para outro o homem era um “bom selvagem”. Essa divergência
explica todo o provir das respectivas teses de fundação da
sociedade. A liberdade é encarada de modo completamente diverso,
pois para Hobbes se não houvesse o laço social seria impossível
falar em liberdade, tendo em vista a natureza agressiva e belicosa do
ser humano, cuja anomia de uma região repleta dessa espécie seria
levada à falência e destruição, pois com a ausência de limites à
liberdade a própria acabaria sendo cerceada definitivamente em longo
prazo. Ou, ao menos, restaria em poder dos homens mais fortes ou que
tivessem à disposição as melhores tecnológicas bélicas da era
primitiva. Com Rousseau, entretanto, o dever de laço social só
surge a partir da corrupção do homem pela posse de bens e regiões
naturais, gerando a desigualdade social. Ele vê um homem
naturalmente bom, mas que quando agrega valor a objetos da natureza e
os toma para si acaba criando condições de sofrimento alheio, pela
escassez de recursos e controle sobre os indivíduos sem posses. Dada
essa condição, a relação social, por meio do contrato tácito,
passa a ser imperiosa, a fim de que se estabeleça mais dignidade
entre os sujeitos, a partir de regras claras de conduta às quais
todos se subordinam. Rousseau defende que se procure ao máximo
voltar para a condição primitiva, buscando a boa natureza humana,
através de medidas impeditivas à propriedade privada,
representatividade direta na política e educação próxima da
espartana, retirando os infantes do seio social para que não se
corrompam seus valores individuais, e bons, segundo o entendimento do
pensador.
Vê-se
claramente aí a repercussão político-econômica que gera tais
interpretações do momento originário do homem. É evidente que
tais construções são, apesar de consistentes logicamente,
metafísicas, não correspondendo a um método científico de análise
histórica, pela ausência de documentos que corroborem quaisquer
dessas teses. O que não impede, no entanto, que tais teorias sejam
suficientes para basear uma gama imensa de ideologias presentes hoje,
refletindo-se, obviamente, nas políticas de Estado adotadas. Embora
pudéssemos aludir que essas duas correntes não encerram as
ideologias, sendo esses conjuntos de valores produtos de uma série
ilimitada de teorias, é possível afirmarmos que na raiz das
divergências se encontra a distinção da natureza humana retratada
nessas duas principais vertentes filosóficas. Temos, por exemplo, o
socialismo científico, que é produto, dentre outros, de Hegel,
Marx, Gramsci, Trotski. Já o liberalismo clássico conta com a
contribuição de Adam Smith, John Locke, Ricardo, Voltaire, Milton
Friedman, Ayn Rand etc. Mas a primeira ideologia bebe, em seu ponto
originário, diretamente da corrente de Rousseau, enquanto a segunda
ideologia tem como fulcro o modelo humano de Hobbes, em que pese esta
corrente ter servido aos propósitos absolutistas, sendo John Locke o
contratualista basilar do liberalismo. Entretanto, Locke não rompeu
com a ideia do homem cruel por natureza, devendo a Hobbes tal
construção. Desta forma, é Hobbes quem inicia tal idealização
que constitui a base dos sistemas conservadores, dentre os quais se
destaca a ideologia liberal clássica.
Uma
tênue diferença de construção teórica enseja a maior
discrepância possível no amálgama de valores que cada ideologia
possui. É o fato de crer na boa natureza humana - e na corrupção
do homem a partir da extração de bens do meio ambiente,
agregando-lhes valor - o que gera todo o corpo de conhecimento de
cunho socialista, pois se observarmos os pleitos de tal ideologia
verificaremos que nada mais são do que tentativas de resgate a essa
condição natural, segundo tal ideário. A revolução do
proletariado visa a restabelecer a hipotética igualdade presente no
ambiente primitivo, pois retira do indivíduo a propriedade,
extermina com o sistema de heranças e educa os sujeitos para que
culturalmente a ambição seja extirpada, a fim de se eliminar o
egoísmo, em nome de um bem comum. Em um primeiro momento, designa ao
Estado todo o poder, para que posteriormente os indivíduos possam
controlar os meios de produção sem a interferência de um ente
intermediário. Tal sistema crê que a verdadeira liberdade está
presente somente nessas condições em que buscamos nossa verdadeira
natureza, a de bom homem e altruísta. Em contrapartida, acreditando
na má natureza humana é que se consolida o ideário liberal, pois o
fato de sermos egoístas e ambiciosos é o que nos move na direção
de adquirir excedentes materiais, a fim de atingirmos o conforto que
julgamos necessário. E para tal empreendimento, é preciso um
esforço pessoal que nos leva a progredir, empenhando todo o trabalho
possível para a eficiência de nossa produção. Assim, com
objetivos bem claros, desenvolvemos de uma forma mais acelerada as
tecnologias, atingindo um aumento de satisfação social, em que pese
a desigualdade econômica que surge a partir das diferenças naturais
decorrentes das capacidades de cada indivíduo. O Estado deve ser
minimamente dotado de poder, a fim de assegurar a segurança que
possibilite ao ser humano desenvolver suas liberdades, não devendo
interferir no mercado econômico e nos direitos políticos dos
cidadãos. Neste caso, a liberdade reside na possibilidade de
criação, produção, gerência, expressão e locomoção, sendo,
inclusive, o ato de abrir mão parcialmente de sua liberdade, tal
como a venda da força de trabalho como contraprestação do salário,
um ato de liberdade.
São
formas absolutamente distintas, como se vê, de se encarar a
liberdade e sua relação com o social. Como eu dissera, é quase
impossível nos desvincularmos dessas ideologias. Podemos dizer,
paradoxalmente, que não somos livres para escolhermos um conceito de
liberdade, pois invariavelmente chegaremos a posições que, no
mínimo, se aproximarão muito de um dos dogmas apresentados. E isso
se dará sem que o queiramos, pois a narrativa histórica está
vinculada a essas distorções da realidade, cuja única
possibilidade é vislumbrar um espectro bem turvo que representa o
que chamamos de real.
Ao
menos, é interessante sabermos as origens das ideologias, a fim de
que saibamos distinguir de uma forma mais adequada qual posição
tomar. Ao mesmo tempo, serve para que possamos identificar as
virtudes e defeitos de cada uma, numa tentativa desesperada de
alcançarmos, na melhor das hipóteses, uma liberdade de pensamento,
não se restringindo a uma cartilha enlatada e bastante usada. Para
se alcançar algo próximo da liberdade, é preciso primeiramente
buscar a luz própria!
Que ela
chegue a nós!
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