terça-feira, 3 de abril de 2012

Ideologia da liberdade e a liberdade de ideologia

Eugene Delacroix - A Liberdade Guiando o Povo


O conceito de liberdade é objeto das mais diversas interpretações e, basicamente, é pautado sob cores ideológicas, que acabam subordinando sua análise a um conjunto de valores fechado e pouco maleável, constituindo-se em dogma.

Primeiramente, temos de inferir que a liberdade é uma característica única do ser humano, ao menos aqui na Terra e do que conhecemos até então do Universo. Ora, por que um animal não-intelectual jamais pode ser livre?, perguntaria o curioso. A razão está na falta de capacidade deste ser em escapar aos desígnios naturais, em um primeiro plano. Por não ser dotado de consciência, o animal não-humano age conforme seus instintos, limitando a sua força aos agentes naturais com os quais fora premiado pela mãe natureza. Seu dote físico e suas ações instintivas, irracionais e selvagens são o único instrumental em que tal ser pode empreender. É um ser, também, impossibilitado de manufaturar, portanto jamais poderá ser um animal tecnológico. A tecnologia é, então, uma característica do ser livre, ou, mais adequadamente, uma consequência da liberdade. Portanto, só o ser humano possui as características que fazem nascer o conceito de liberdade, sendo restrito tal estudo a uma análise antropológica, a fim de identificar suas repercussões nas diversas áreas do conhecimento, mais notadamente na economia e política, que acabam gerando as diversas interpretações ideológicas. Nas artes também se verifica uma preocupação permanente com a relação da liberdade humana na criação aos seus limites, à preocupação quanto ao grau de rigidez (ou flexibilidade) da estética etc.

Em segundo lugar, é necessário, a partir da ideia da liberdade como um fator antropológico, estabelecer como se a constrói nas relações sociais, daí se originando as percepções ideológicas no que tange à política e economia. Cada sujeito opta por uma versão da história vinculada ao conjunto de valores que constitui a respectiva ideologia escolhida. É quase impossível ao indivíduo construir uma ideologia própria, pois a história está turvada pelas diferentes interpretações que os estudiosos apresentaram nessa caminhada humana. Em tese, os fatos se apresentam aos moldes dos vencedores, e invariavelmente determinados episódios acabam sendo reinterpretados, quando grupos de diverso matiz político tomam o poder, ou se tornam moda na cultura e costume de determinado período futuro ao fato histórico. Portanto, o sujeito que se interessa pela análise pura dos fenômenos sociais está prejudicado pelas versões predominantes ou colidentes, mas sempre versões. Não há espaço para uma construção imparcial de teses, pois estamos subordinados a este conhecimento precário do nosso passado, bem como a imparcialidade, mesmo que desejada, demonstra-se demasiadamente utópica, visto que o ser humano adota posições frente aos conceitos, sendo essa uma condição natural da espécie.

Em que pese as dificuldades narradas, podemos apresentar como alguns grupos ideológicos conceituam a liberdade nas relações sociais, sempre a partir de um prisma histórico, como se verifica de uma análise acurada dos grandes pensadores por trás desses movimentos filosóficos, políticos e econômicos. Resumidamente, há duas correntes modernas predominantes de conceituação da relação da liberdade individual com o laço social, de cuja base se originam as mais diversas facetas ideológicas. Tais filósofos, que erigiram bases sólidas para a posteridade do pensamento, são comumente denominados como “contratualistas”, pois veem as relações múltiplas como um contrato tácito que o indivíduo realiza com o seio social, a fim de proteger a sua própria liberdade. São os chamados contratos sociais. A diferença entre os pensadores reside na idealização que cada um fez do momento primitivo em que não havia tal relação de sociedade, bem como do momento em que acaba se construindo a ligação do sujeito a um corpo maior, partindo daí as divergências de conceituação. Dentre outros pensadores, destaco dois que podem ser tidos como representantes das duas escolas colidentes: Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau. De uma forma rasa, bastante limitada mesmo, podemos afirmar que a diferença central está na natureza do homem selvagem, na comparação entre ambas as teorias. Enquanto para um pensador o “homem é o lobo do homem”, para outro o homem era um “bom selvagem”. Essa divergência explica todo o provir das respectivas teses de fundação da sociedade. A liberdade é encarada de modo completamente diverso, pois para Hobbes se não houvesse o laço social seria impossível falar em liberdade, tendo em vista a natureza agressiva e belicosa do ser humano, cuja anomia de uma região repleta dessa espécie seria levada à falência e destruição, pois com a ausência de limites à liberdade a própria acabaria sendo cerceada definitivamente em longo prazo. Ou, ao menos, restaria em poder dos homens mais fortes ou que tivessem à disposição as melhores tecnológicas bélicas da era primitiva. Com Rousseau, entretanto, o dever de laço social só surge a partir da corrupção do homem pela posse de bens e regiões naturais, gerando a desigualdade social. Ele vê um homem naturalmente bom, mas que quando agrega valor a objetos da natureza e os toma para si acaba criando condições de sofrimento alheio, pela escassez de recursos e controle sobre os indivíduos sem posses. Dada essa condição, a relação social, por meio do contrato tácito, passa a ser imperiosa, a fim de que se estabeleça mais dignidade entre os sujeitos, a partir de regras claras de conduta às quais todos se subordinam. Rousseau defende que se procure ao máximo voltar para a condição primitiva, buscando a boa natureza humana, através de medidas impeditivas à propriedade privada, representatividade direta na política e educação próxima da espartana, retirando os infantes do seio social para que não se corrompam seus valores individuais, e bons, segundo o entendimento do pensador.

Vê-se claramente aí a repercussão político-econômica que gera tais interpretações do momento originário do homem. É evidente que tais construções são, apesar de consistentes logicamente, metafísicas, não correspondendo a um método científico de análise histórica, pela ausência de documentos que corroborem quaisquer dessas teses. O que não impede, no entanto, que tais teorias sejam suficientes para basear uma gama imensa de ideologias presentes hoje, refletindo-se, obviamente, nas políticas de Estado adotadas. Embora pudéssemos aludir que essas duas correntes não encerram as ideologias, sendo esses conjuntos de valores produtos de uma série ilimitada de teorias, é possível afirmarmos que na raiz das divergências se encontra a distinção da natureza humana retratada nessas duas principais vertentes filosóficas. Temos, por exemplo, o socialismo científico, que é produto, dentre outros, de Hegel, Marx, Gramsci, Trotski. Já o liberalismo clássico conta com a contribuição de Adam Smith, John Locke, Ricardo, Voltaire, Milton Friedman, Ayn Rand etc. Mas a primeira ideologia bebe, em seu ponto originário, diretamente da corrente de Rousseau, enquanto a segunda ideologia tem como fulcro o modelo humano de Hobbes, em que pese esta corrente ter servido aos propósitos absolutistas, sendo John Locke o contratualista basilar do liberalismo. Entretanto, Locke não rompeu com a ideia do homem cruel por natureza, devendo a Hobbes tal construção. Desta forma, é Hobbes quem inicia tal idealização que constitui a base dos sistemas conservadores, dentre os quais se destaca a ideologia liberal clássica.



Uma tênue diferença de construção teórica enseja a maior discrepância possível no amálgama de valores que cada ideologia possui. É o fato de crer na boa natureza humana - e na corrupção do homem a partir da extração de bens do meio ambiente, agregando-lhes valor - o que gera todo o corpo de conhecimento de cunho socialista, pois se observarmos os pleitos de tal ideologia verificaremos que nada mais são do que tentativas de resgate a essa condição natural, segundo tal ideário. A revolução do proletariado visa a restabelecer a hipotética igualdade presente no ambiente primitivo, pois retira do indivíduo a propriedade, extermina com o sistema de heranças e educa os sujeitos para que culturalmente a ambição seja extirpada, a fim de se eliminar o egoísmo, em nome de um bem comum. Em um primeiro momento, designa ao Estado todo o poder, para que posteriormente os indivíduos possam controlar os meios de produção sem a interferência de um ente intermediário. Tal sistema crê que a verdadeira liberdade está presente somente nessas condições em que buscamos nossa verdadeira natureza, a de bom homem e altruísta. Em contrapartida, acreditando na má natureza humana é que se consolida o ideário liberal, pois o fato de sermos egoístas e ambiciosos é o que nos move na direção de adquirir excedentes materiais, a fim de atingirmos o conforto que julgamos necessário. E para tal empreendimento, é preciso um esforço pessoal que nos leva a progredir, empenhando todo o trabalho possível para a eficiência de nossa produção. Assim, com objetivos bem claros, desenvolvemos de uma forma mais acelerada as tecnologias, atingindo um aumento de satisfação social, em que pese a desigualdade econômica que surge a partir das diferenças naturais decorrentes das capacidades de cada indivíduo. O Estado deve ser minimamente dotado de poder, a fim de assegurar a segurança que possibilite ao ser humano desenvolver suas liberdades, não devendo interferir no mercado econômico e nos direitos políticos dos cidadãos. Neste caso, a liberdade reside na possibilidade de criação, produção, gerência, expressão e locomoção, sendo, inclusive, o ato de abrir mão parcialmente de sua liberdade, tal como a venda da força de trabalho como contraprestação do salário, um ato de liberdade.



São formas absolutamente distintas, como se vê, de se encarar a liberdade e sua relação com o social. Como eu dissera, é quase impossível nos desvincularmos dessas ideologias. Podemos dizer, paradoxalmente, que não somos livres para escolhermos um conceito de liberdade, pois invariavelmente chegaremos a posições que, no mínimo, se aproximarão muito de um dos dogmas apresentados. E isso se dará sem que o queiramos, pois a narrativa histórica está vinculada a essas distorções da realidade, cuja única possibilidade é vislumbrar um espectro bem turvo que representa o que chamamos de real.



Ao menos, é interessante sabermos as origens das ideologias, a fim de que saibamos distinguir de uma forma mais adequada qual posição tomar. Ao mesmo tempo, serve para que possamos identificar as virtudes e defeitos de cada uma, numa tentativa desesperada de alcançarmos, na melhor das hipóteses, uma liberdade de pensamento, não se restringindo a uma cartilha enlatada e bastante usada. Para se alcançar algo próximo da liberdade, é preciso primeiramente buscar a luz própria!



Que ela chegue a nós!

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